quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

As frágeis mulheres fortes de Israel


Submissão religiosa, maus-tratos e desigualdades laborais complicam a existência de metade da população israelense



Carmen Rengel
de Jerusalém (Israel)

“És benigno. Senhor eterno. Deus nosso. Rei do Mundo que não me fez mulher”. A cada manhã, numerosos judeus praticantes agradecem à Deus em sua reza de Adom Olam por haver-lhes salvado da escravidão, evitado que caíssem na idolatria e tê-los afastado do estigma de ser mulher, esses seres submetidos, cuja única função sobre a terra é engendrar novos filhos do povo escolhido.
Nem todos os judeus recitam essa ladainha, nem todos creem de pés juntos que ser mulher é uma desonra. Não. Mas o certo é que em Israel a religião se mescla tanto com a vida que acaba por tornar-se lei. Ainda que formalmente não se tenha declarado um “Estado judeu”, Israel o é na prática, e são as mulheres as que mais sofrem essa realidade.
Esse desenho da mulher israelense forte, firme, empreendedora, capaz de pilotar um caça, se esvai com outras qualificações, menos visíveis, mas igualmente reais: as da mulher insultada, aprisionada pela religião, minimizada por uma sociedade masculina. As frágeis mulheres fortes de Israel.

Machismo e matrimônio

As mulheres, que são 51% da população do país (pouco mais de 3,5 milhões de pessoas), veem seus direitos vulnerados especialmente no campo da família. Arrastam a obrigação geral de se casarem por meio de um rito religioso, já que o matrimônio civil não é contemplado e, além disso, só se pode levar a cabo com o consentimento do rabino.
Os problemas aumentam caso o casal queira separar-se. Gila Adahan, advogada de Jerusalém especializada em divórcios, explica que as separações se regem pelas leis do Talmud, dos séculos 4 e 5. “Só o homem pode conceder o divórcio, e tem que entregá-lo por escrito pessoalmente à mulher”. Essa cláusula dá lugar a um fenômeno denominado “mulheres ancoradas”, que não conseguem o divórcio se o marido não quiser ou, inclusive, se ele estiver fisicamente impedido e não puder assiná-lo com seu punho e letra.
A solução, explica a especialista, passa por uma longa espera, já que a média para conseguir o divórcio em Israel é de dez anos, segundo ONGs, e de dois, segundo o governo. Existem mulheres que buscam outra solução: pagam seus esposos para que as deixem separar. “Não é incomum que renunciem à moradia ou à manutenção dos filhos para tal. Chegam a um verdadeiro desespero”, completa.

Critérios bizarros

Kaveh Shafran, porta-voz da associação Rabinos pelos Direitos Humanos, explica que as sinagogas tentam ajudar essas mulheres, convencendo os maridos a dar o braço a torcer. Os ameaçam com o “repúdio” da comunidade, com o impedimento de estudar o Torá, com o rebaixamento no organograma da sinagoga e até com denúncias às autoridades penais – em 2007, 80 homens cumpriam prisão depois de serem apontados por seus rabinos, informa a agência Efe.
Às vezes, até pagam um detetive privado para ir atrás do marido fugido. Os rabinos se envolvem sempre que há uma “causa justificada” para o divórcio, mas aí reside outro dos inconvenientes: a extravagância desses critérios.
Shafran explica que o Talmud não considera como “causa suficientemente argumentada” a infidelidade, a violência ou a ausência prolongada do lar. Por isso, se um homem ataca a punhaladas sua esposa, poderá ir à cadeia, mas não tem que conceder divórcio. Aceita-se como causa justificada o fato de o marido ter mau hálito ou não cumprir com suas obrigações na cama. “Um homem pode repudiar sua mulher se não ela cozinha bem, se encontra outra que o satisfaça mais ou se eles não têm filhos”, diz o rabino.
A solteirice “é o maior mal para a mulher israelense”, afirma um dos rabinos mais conservadores do país, Ovadia Yosef, e nem de longe é uma solução: as solteiras estão condenadas ao ostracismo em sua comunidade. É preciso se casar, e logo (24,5 anos as judias, 20,5 as árabes) e ter muitas crias (três em média). Aqui não fica nem o consolo da Espanha antiga de tornar-se freira. Ao contrário: a mulher participa em pouquíssimos atos das cerimônias litúrgicas e apenas em um punhado de sinagogas mais abertas.

Heranças da religião

Sigal Ronen-Katz, assessora legal da Israel Women's Network (IWN, uma das principais organizações feministas do país), sustenta que a religião marca uma sociedade patriarcal que acaba por gerar maus-tratos. Sempre se difundiu a ideia da israelense valente, pioneira, combatente, criadora do Estado, pilar-mãe da sociedade, “mas, por trás disso, há pressões psicológicas e físicas muito fortes, especialmente no entorno religioso”.
Segundo seus dados, 42% das mulheres ultraortodoxas apanham de seus maridos e 24% sofre violência sexual. Nos últimos 20 anos, 378 mulheres foram assassinadas por seus parceiros. A metade era formada por judias e árabes de idade madura que residiam em zonas radicalizadas.
Quase 36% delas eram estrangeiras, sendo que o número total desse segmento não supera um sexto da população total do país. 2010 foi o pior ano desde 2004, com 18 mortas, o dobro de 2009. O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu informou, no Dia Mundial contra a Violência contra a Mulher (25 de novembro), que 200 mil israelenses e 600 mil crianças são vítimas de violência física ou emocional e, quando denunciam, levam em média cinco anos de calvário.
Ele disse isso abaixando a cabeça diante das mulheres que reprovaram sua debilidade em relação aos agressores: há um ano, ele prometeu cinco milhões de shekel [moeda isaraelense] em ajudas e investimento em refúgios, mas ainda não liberou nada. As ligações para o serviço de assessoramento da IWN cresceram entre 30 e 50% no último ano.
Entre as estrangeiras submetidas a maus-tratos, encontram-se, sobretudo, as russas e as etíopes, justamente as minorias mais presentes no mundo da prostituição. A Divisão para o Adiantamento da Mulher (DAW) sustenta que cerca de 3 mil mulheres estão submetidas à exploração sexual, apesar de que a religião deveria ser um freio para a maioria dos israelenses.
Não é assim. “A prostituição é uma forma moderna de escravidão, inclusive neste país que nasceu fazendo iguais a homens e mulheres e já distante de colonialismos e opressões. Em 15 anos, foram deportadas 5 mil mulheres”, afirma Ronen-Katz. A ONU calcula que cada traficante ganha por ano mais de 60 mil dólares por garota, cada uma comprada por entre 7 e 25 mil dólares. Um bordel pequeno, com dez mulheres, pode gerar 250 mil dólares mensais. 70% das jovens são viciadas em drogas.

Trabalho

“As israelenses se movem em uma realidade masculina sob a falsa aparência de serem iguais”, escreveu já em 1978 a feminista Lesley Hazleton. A situação não mudou muito, como revela a cada ano a comissão criada no parlamento israelense sobre a mulher.
Ruhama Avraham Balila, deputada pelo Kadima e ex-ministra do Turismo, repassa os dados desolada. É uma das 23 mulheres de uma câmara com 120 parlamentares, que sempre oscila entre 7 e 10% de representação feminina, habitualmente de partidos de centro ou esquerda. Entre os dados que aponta, encontra-se o de as mulheres terem melhor formação que os homens, com 2 pontos percentuais mais de tituladas em educação formal (22%) e 9 pontos mais no ensino médio.
55,9% dos estudantes de formação superior são mulheres (a sétima melhor cifra do mundo), mas, apesar disso, o desemprego feminino é dois pontos superior ao masculino (de 6,1 a 8,3%). “É desesperador: somos um quarto do professorado universitário e a pressão familiar e religiosa afasta as meninas das carreiras técnicas. Por fim, somos maioria no de sempre: educação, trabalho social, enfermagem, secretariado… Onde estamos em economia ou defesa? Em nenhum lugar, não nos promovem, não nos veem como igual”, diz uma senhora que teve mais espaço na imprensa por ter sido eleita uma das políticas mais bonitas do mundo do que por seu trabalho.
Nunca foi bem visto que mulheres tenham autonomia em seu emprego, assim que 91,4% das empregadas exercem funções de subordinação, contra 80% dos homens. Não chegam a 4,5% as que têm cargos executivos (sete pontos menos do que os homens) e, na política, passam de um terço apenas em prefeituras potentes como a da capital Tel Aviv.
“Só houve nove prefeitas em nosso país”, denuncia Avraham. Na Corte Suprema, em 62 anos de Estado, só houve três mulheres. Nos últimos dias, a briga no Parlamento se centrou em fazer cumprir a lei de igualdade de salários, que chegam a diferenças de até 38%, e a abertura a todos os empregos, pois muitos estão vetados “por ser perniciosos para a saúde da mulher”, como os trabalhos noturnos.
“Não nos deixam ser as judias fortes do Holocausto, ou as que saíram no filme Êxodo. Nos suavizaram no mau sentido. Temos pequenas coisas: um ano de licença maternidade, uma lei contra o assédio sexual muito potente, ajudas de escolarização… E, entretanto, ser mulher aqui é muito difícil”.

Minoria esquecida

A discriminação geral da mulher israelense se soma, no caso das árabes, ao fato de pertencerem a uma minoria esquecida. Fadwa Lemsine, 36 anos, empresária, se vê como uma vítima tripla, “por ser árabe em um Estado judeu, por suportar uma sociedade patriarcal que exala machismo e por não poder receber a qualificação necessária para escalar neste mundo de economia liberal”. Ela é uma exceção, parte desses escassos 3% de autônomas, sobrevivendo em sua loja de design de interiores. Segundo o Escritório Central de Estatística de Israel, só 18,6% das árabes trabalham, diante de 56% entre as judias.
As mulheres árabes limpam Israel, basicamente. Ou dão aulas em colégios de sua mesma minoria. Ou cozinham. Trabalham por 47% menos do salário de uma israelense. Casam-se antes, têm mais filhos e, ainda que a palestina seja uma das comunidades mais progressistas do Oriente Médio, também carregam o rigor do Islã. “Eu estudei em um centro árabe, não tive subvenção alguma para abrir minha empresa, recebi pressões municipais para contratar judeus… Ainda assim, sou a primeira empresária da minha família, estou orgulhosa”, defende.
Ela colabora em uma associação de mulheres e afirma que um quinto das mulheres de Israel vivem na pobreza e quase um terço não come todos os dias para que nada falte a sua família. “Essa é a tragédia, não temos poder, mas pobreza, e esse círculo vicioso não acaba”, lamenta. A crescente radicalização religiosa do país só complica as coisas. “Maus tempos, é sempre ruim nascer mulher nesta terra”.

Tradução: Vinicius Mansur

''É preciso um Nuremberg dos especuladores''. Entrevista com Jean Ziegler



Diplomata internacional na ONU, Ziegler publicou o ensaio El odio a Occidente, uma crítica ao sistema capitalista dominado pela Europa e pelos EUA.
A reportagem é de Guillaume Fourmont Madrid, publicada no sítio Publico.es, 29-12-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Que ninguém se deixe enganar pelo seu cargo muito oficial de membro do Comitê Consultivo do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Por trás de seus óculos de professor de universidade, o suíço Jean Ziegler (Thoune, 1934) é um revolucionário. Ele gosta de provocar e gritar o que os seus colegas diplomatas não ousam dizer nem nos corredores das organizações internacionais.
Um exemplo: "Uma criança que morre de fome hoje em dia é um assassinato". Outro: "Somos democracias, mas praticamos um fascismo exterior". Ziegler é um argumento que argumenta cada frase com números ou citações de grandes intelectuais, como esse grito de dor do poeta anticolonialista Aimé Césaire: "Vivo em uma ferida sagrada / Vivo em um querer obscuro / Vivo em um longo silêncio".
Dessa ferida, Ziegler falar em seu último livro, El odio a Occidente (Ed. Península), um título que responsabiliza os países desenvolvidos pelos males do mundo. O escritor não perde a esperança e aspira a uma "revolução para acabar com a ordem canibal do mundo". Na capa do seu ensaio, a letra "i" da palavra ódio é uma bomba com detonador. Resta só um segundo para que ela exploda.
Eis a entrevista.


O mundo vai tão mal assim?
Jamais na história um imperador ou um rei teve tanto poder como o que a oligarquia do poder financeiro possui na atualidade. São as bolsas que decidem quem vive e quem morre. Doze bilhões de pessoas podem comer, o dobro da população mundial. Mas a cada cinco segundos, uma criança menor de 10 anos morre de fome. É um assassinato!
É daí que vem o ódio do qual o senhor falar? Por que nos odeiam?
É preciso distinguir dois tipos de ódio. Um, primeiro, patológico, como o da Al Qaeda, que assassina inocentes com bombas. Mas nada justifica essa violência, nada! E o meu livro não trata disso. Refiro-me a um ódio meditado, que pede justiça e compensação, que chama a romper com o sistema estrutural do mundo, dominado pelo capitalismo.
Não aprendemos nada com a crise?
Lições? É pior ainda: esses bandidos de especuladores que provocaram a crise e a quebra do sistema ocidental atacam agora produtos como o arroz e o trigo. Há milhares de vítimas a mais do que antes. É preciso sentar esses especuladores na cadeira. É preciso realizar um Nuremberg para eles!
O senhor trabalha na ONU. Não acredita no papel da comunidade internacional?
O mero fato de que a comunidade internacional seja consciente dos problemas do mundo é positivo. Os Objetivos do Milênio não se cumpriram, mas não sou uma pessoa cética.
Não acredita, no entanto, que o Ocidente só se interessa pelo Ocidente e que mantém o Terceiro Mundo na pobreza de propósito?
É verdade! Mas não se trata de doar mais, mas sim de roubar menos. Na África, podem-se encontrar produtos europeus mais baratos do que os locais, enquanto que as pessoas se matam trabalhando. A hipocrisia dos europeus é bestial! Nós geramos fome na África, mas quando os imigrantes chegam às nossas costas em balsas os mandamos embora. Para acabar com a fome, é preciso uma revolução!
No Ocidente? Isso é possível?
A sociedade civil se despertou. Há movimentos como Attac, Greanpeace e outros que fazem uma crítica radical da ordem mundial. No Ocidente, temos democracias, mas praticamos um fascismo exterior. Embora não haja nada impossível na democracia. "O revolucionário deve ser capaz de ouvir a grama crescer", disse Karl Marx.
Em seu livro, o senhor fala da Bolívia de Evo Morales como exemplo.
É um caso exemplar. Pela primeira vez na história, o povo boliviano elegeu como presidente um deles, um indígena aimara. E, em seis meses, expulsaram as empresas privadas que ficavam com todos os benefícios das energias do país. O governo pode, com esses milhões ganhados, lançar programas sociais, e a Bolívia é agora um Estado florescente e, principalmente, soberano. Veja, não sou um ingênuo, mas na Bolívia a memória ferida do povo se converteu em uma luta política, em uma insurreição identitária.
Em outros termos, Morales merecia mais o Nobel da Paz do que Obama.
Claro! O Nobel de Obama era ridículo, era una operação de marketing.
Obama não trazia consigo nenhuma esperança?
Ver uma cara negra de presidente dos Estados Unidos na capa de grandes revistas foi incrível, principalmente porque o bisavó da esposa de Obama era um escravo. Mas é só um símbolo. O império norte-americano é três coisas: a indústria armamentícia, Wall Street e o lobby sionista. Obama sabe que se tocar em algum dos três está morto. E não vai fazer isso. A esperança vem da sociedade civil. Se conseguirmos criar uma aliança planetária de todos os movimentos de emancipação, do Ocidente e do Sul, então haverá uma revolução mundial, uma revolução capaz de acabar com a ordem canibal do mundo.

«Criámos um monstro: a ocupação»

Pela primeira vez, ex-oficiais do exército israelita dão a cara para denunciar os crimes de Israel em Gaza. Eis uma entrevista de Yehuda Shaul, fundador da ONG Breaking the Silence e autor do livro do mesmo nome. Seguem-se algumas declarações de outros ex-oficiais na mesma organização. Por ex-oficiais israelitas, entrevista de Catherine Schwaab


Yehuda Shaul, 28 anos, ex-oficial do exército israelita, é autor de Breaking the Silence [Quebrar o silêncio], um livro acontecimento que será publicado em Janeiro, onde os combatentes do Tsahal [o exército israelita] contam o seu intolerável comportamento nos territórios ocupados em Gaza. Uma entrevista de Catherine Schwaab publicada na revista francesa Paris Match.

Catherine Schwaab [CS]: O seu livro é uma bomba pelas suas revelações: que efeito concreto espera?
Yehuda Shaul [YS]: Espero poder enfim suscitar uma verdadeira discussão séria em Israel pois, desta vez, os nossos testemunhos são numerosos, verificados, incontestáveis: são 180 e tiramos deles uma análise, o que é novo.
CS: Pensa que a opinião pública ignora o que significa a ocupação militar dos territórios palestinianos?
YS: O público tem clichés na cabeça que incitam à aprovação cega. Por exemplo, em hebreu, a política israelita nos territórios ocupados resume-se a quatro termos que não se pode contestar: “sikkul” (a prevenção do terrorismo), “afradah” (a separação entre a população israelita e a população palestiniana), “mirkam hayyim” (o “fabrico” da existência palestiniana) e “akhifat hok” (a aplicação das leis nos territórios ocupados). Na realidade, sob esses nomes de código escondem-se terríveis desvios que vão do sadismo à anarquia e rejeitam os mais elementares direitos da pessoa. Isso vai até aos assassinatos de indivíduos inocentes que se calcula serem terroristas. E não falo das prisões arbitrárias e dos assédios de toda a espécie.
CS: Qual é o objectivo disso?
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Todos os dias, milhares de palestinianos são bloqueados sob o olhar dos soldados armados. Foto de Quique Kierszenbaum
YS: Está claramente definido: é o de mostrar a presença permanente do exército, de produzir o sentimento de ser-se perseguido, controlado, em suma, trata-se de impor o medo a todos na sociedade palestiniana. Opera-se de maneira irracional, imprevisível, criando um sentimento de insegurança que quebra a rotina.
CS: A ocupação dos territórios não será necessária para evitar «surpresas» terroristas?
YS: Não! A ocupação sistemática não se justifica, pois ela abrange uma série de interdições e de entraves inadmissíveis. Queremos discutir sobre isso agora. Nem no seio do exército nem no seio da sociedade civil ou política se quer enfrentar a verdade. E essa verdade, é que nós criámos um monstro: a ocupação.
CS: Pode esperar-se que discussões sérias sobre a paz melhorem a situação?
YS: Não, tentar acabar com o conflito é uma coisa, acabar com a ocupação é outra. Estamos todos de acordo para procurar a paz, mas esquecemos a ocupação. Ora, é preciso começar por aí.
CS: Os vossos testemunhos revelam a incrível impunidade de que beneficiam os colonos, verdadeiros assistentes militares: eles brutalizam os vizinhos palestinianos, levam os seus filhos à agressividade e ao ódio dos árabes…
YS: Certamente, mas não são eles o problema. É o mecanismo de ocupação que lhes deu esse poder desmedido. Eu, quando era militar em Hebron, não podia deter um colono que estivesse a infringir abertamente a lei sob os meus olhos. Eles fazem parte desse sistema imoral.
CS: Pensa encontrar um apoio na opinião israelita?
YS: Por enquanto, somos minoritários mas optimistas! Temos de sê-lo, pois vivemos tempos sombrios, a opinião israelita é apática, as pessoas estão fartas. E o preço a pagar por esta ocupação não é pesado. É a razão por que não há vontade política. Em contrapartida, o preço moral é enorme.
CS: É a primeira vez que são feitas tais revelações?
Yehuda Shaul, 28 anos, ex-oficial do exército israelita, fundador da ONG Breaking the Silence. Foto de Quique Kierszenbaum
Yehuda Shaul, 28 anos, ex-oficial do exército israelita, fundador da ONG Breaking the Silence. Foto de Quique Kierszenbaum
YS: Não, há um ano, tínhamos contado as pilhagens na faixa de Gaza e tínhamos sido atacados por todos os lados: pelo exército, pela sociedade civil e a sociedade política. Netanyahu acusou-nos de termos «ousado quebrar o silêncio». Mas que silêncio? É um silêncio vergonhoso sobre um escândalo estrondoso! Eles fizeram tudo para nos desacreditar. Saiu-lhes mal, pois nós somos todos antigos oficiais que vivemos esses acontecimentos terríveis.
CS: Precisamente, muitos soldados e oficiais que se expressam parecem traumatizados pelo que tiveram de fazer. Um sofrimento que permanece.
YS: Sim… Enfim, não nos enganemos: as vítimas, são os palestinianos que aguentam esse controlo. Hei-de sempre recordar a resposta de um comandante do exército durante uma discussão televisiva em 2004. Tínhamos organizado uma exposição de fotografias com um vídeo de testemunhos. Ele disse-me: «Concordo com o que vocês mostram, mas é assim, temos de aceitá-lo, isso chama-se crescer, tornar-se adulto». Fiquei sem palavras.
CS: Algumas pessoas pensam que Israel tem interesse em manter o conflito e que os palestinianos nunca terão as suas terras.
YS: É falso. É impossível erradicar uma população de 3,5 milhões de habitantes. O problema não está em dar-lhes uma terra, mas na obsessão de querer controlá-los.
CS: Serão as jovens gerações dos 20-30 anos mais permeáveis ao vosso ponto de vista?
YS: Nem toda a minha geração está de acordo comigo, mas ninguém pode dizer que minto. Somos todos ex-membros do exército nacional, pagámos o preço, ganhámos o direito de falar. É preciso que os espíritos mudem a partir de dentro.
CS: Você é judeu ortodoxo e tem um discurso estranhamente aberto. A sua fé ajuda-o neste combate?
YS: Nem por isso… Mas eu sei o que significa ser judeu religioso: não ficar silencioso perante o que está mal. E quero trazer uma solução, não um problema.
Micha, Dana, Noam e Mikhael combateram pelo Tsahal. É a primeira vez que oficiais israelitas contestam dando a cara contra os métodos do exército. Foto de Quique Kierszenbaum
Micha, Dana, Noam e Mikhael combateram pelo Tsahal. É a primeira vez que oficiais israelitas contestam dando a cara contra os métodos do exército. Foto de Quique Kierszenbaum
Declarações de 4 ex-oficiais, extraídas do livro Breaking the Silence
Granadas para provocar o medo
“Aparecemos de repente numa aldeia palestiniana, às 3h da madrugada, e começamos a lançar granadas de aturdimento nas ruas. Para nada, para provocar o medo. Víamos as pessoas acordarem desvairadas… Diziam-nos que isso punha em fuga eventuais terroristas. Balelas… Fazíamos isso todas as noites, rotativamente. Uma rotina. Diziam-nos: ‘Bela operação’. Nós não compreendíamos porquê.”
Roubar um hospital
“Uma noite, recebemos ordens para entrar à força numa clínica de Hebron que pertence ao Hamas. Confiscámos o equipamento: computadores, telefones, impressoras, outras coisas, ao todo um valor de milhares de sheleks [moeda de Israel = 0,21 euros, 0,47 reais]. E porquê? Atingir o Hamas financeiramente, mesmo antes das eleições para o Parlamento palestiniano, para eles as perderem. O governo israelita anunciara oficialmente que não iria tentar influenciar essas eleições…”
“Matámos um tipo por pura ignorância”
“Não sabíamos que, durante o ramadão, os fiéis saem à rua às 4 horas da manhã para acordar as pessoas, para que se alimentem antes do nascer do dia. Identificamos um tipo numa alameda que segura algo nas mãos, gritamos-lhe ‘alto!’. Então, se o ‘suspeito’ não pára imediatamente, o regulamento exige que se faça o aviso. ‘Páre ou atiro’, depois atiramos para o ar, a seguir para as pernas, etc. Matámo-lo, ponto final. E por pura ignorância dos ritos locais.”
Camponeses em pranto
“As nossas escavadoras levantam uma barreira de separação mesmo no meio de um campo de figueiras palestiniano. O camponês chega lavado em lágrimas: ‘Plantei este pomar durante dez anos, esperei dez anos que ele desse frutos, colhi-os durante um ano apenas e agora arrancam-mo pela raiz!’ Não há hipótese de replantar. Só há compensações a partir de 41% de terra confiscada. Se for só 40%, não levas nada. O pior é que amanhã, se calhar, eles vão decidir parar a construção da barreira.”
Devolver os galões [distintivos], voltar a ser soldado
“Instalamos pontos de controlo surpresa. Em qualquer lado, nunca se sabe claramente. E de repente prendemos toda a gente, controlamos todos os documentos. Ali estão mulheres, crianças, velhos, durante horas, por vezes à torreira do sol. Prendemos inocentes, pessoas que querem ir trabalhar, procurar alimentos, não são terroristas… Tive de o fazer durante cinco meses, oito horas por dia, isso deitou-me abaixo. Então decidi devolver os galões de comandante.”
“A nossa missão: incomodar, assediar”
“Estamos em Hebron. Como os terroristas são residentes locais e a nossa missão é entravar a actividade terrorista, a via operacional é esquadrinhar a cidade, entrar em casas abandonadas, ou em casas habitadas escolhidas ao acaso – não há serviço de informações para nos orientar –, revistá-las, saqueá-las… e nada encontrar. Nem armas nem terroristas. Os habitantes acabaram por se habituar. Andam irritados, depressivos, mas habituados porque é assim há anos. Fazer sofrer a população civil, fazer das suas vidas um inferno, e saber que isso não serve para nada. Dá um tal sentimento de inutilidade.”
“As punições colectivas”
“Os meus actos mais imorais? Fazer explodir casas de suspeitos terroristas, prender centenas de pessoas em massa, olhos vendados, pés e mãos atados, levá-los em camiões [caminhões]; entrar nas casas e expulsar brutalmente as famílias; às vezes voltávamos lá para fazer explodir a casa; nunca sabíamos porquê essa casa e não outra, nem quais suspeitos prender. Por vezes davam-nos ordem para destruir, com o bulldozer ou com explosivos, a entrada da aldeia, à guisa de punição colectiva por terem albergado terroristas.”
“Proteger colonos agressivos”
Chegamos subitamente ao distrito de Naplouse para garantir a segurança dos colonos. Descobrimos que eles decidiram atacar Huwara, a aldeia vizinha, palestiniana. Estão armados, atiram pedras, com o apoio de um grupo de judeus ortodoxos franceses que filmam, tiram fotografias. Resultado: ficamos entalados entre árabes surpreendidos, aterrorizados, e a nossa obrigação de proteger os colonos. Um oficial tenta fazer recuar os colonos para as suas terras, é agredido, há tiroteio, o oficial retira-se. Não sabemos o que mais fazer: sustê-los, proteger os palestinianos, proteger-nos a nós, uma cena absurda e demente. Acabámos por conseguir que os agressores voltassem para casa. Uma dezena de árabes ficaram feridos.”
Assassinar um homem desarmado
Estamos de vigia numa casa cujos ocupantes expulsámos, suspeita-se da presença de terroristas, estamos de vigia, são 2 horas da manhã. Um dos nossos atiradores localiza um tipo que caminha em cima de um telhado. Eu olho com os binóculos, tem 25 ou 26 anos, não está armado. Damos a informação por rádio ao comandante e este intima-nos: ‘É um vigia deles. Abatam-no.’ O atirador obedece. Eu chamo a isso um assassinato. Tínhamos meios de o prender. E não foi um caso único, são às dezenas.”

Versão original da entrevista (em francês) aqui.
 
Versão original (em francês) das declarações dos 4 oficiais extraídas do livro, aqui.

Tradução da entrevista de Yehuda Shaul: Comité de Solidariedade com a Palestina
 
Tradução dos excertos do livro: Passa Palavra.

Paraguai - O Vizinho Desconhecido




Por Marcelo Voges Guerguen* do aldeia gaulesa



 É meio de praxe que nós brasileiros desconheçamos o que passa ao lado de 
nossas fronteiras. 
Quando muito, ouvimos mais sobre a Argentina, o Chile, e mais recentemente sobre a Venezuela ou qualquer outro governo abaixo de uma “ditadura popular” como descrevem nossa velha conhecida mídia. Talvez aqui no Rio Grande do Sul tenhamos mais conhecimento também sobre nosso vizinho Uruguai, tanto pela proximidade quanto pelos free shops, amados por nossa galera sulista. Mas com certeza, o Paraguai é nosso completo desconhecido.
Quando ouvimos falar do Paraguai, a primeira coisa que vem em nossa cabeça é a relação comercial que nós brasileiros temos com o país guarani. Desde produtos eletrônicos chineses vindos da Ciudad del Este (lugar mais longínquo que os brasileiros vão além da fronteira), até produtos um tanto exóticos, como armamentos ilegais ou a erva (não a mate, que é o principal produto cultivado no país). Por mais que nossos “heróis” tenham sido forjados na Guerra do Paraguai, mesmo assim nossa ignorância em relação a esse vizinho é absurda.
A começar pela própria Guerra do Paraguai, até hoje discutida nas Faculdades de História quanto às reais motivações. Independente dos motivos, ela deixou um saldo de 85% de sua população morta, restando apenas 215 mil pessoas vivas, sendo essas quase 200 mil mulheres. Antes da Guerra, o país guarani era uma referência quanto organização social, pois eram precursores de algumas modernidades industriais como a siderurgia, ferrovias, estaleiro, telégrafos, isso em meados de 1850. As propriedades rurais eram do Estado, sendo que foram distribuídas a população a preços baixos, chamadas de Estâncias da Nação, criando assim um país de classe média agrícola. Dizem que 90% do que era produzido era para consumo interno, e o restante era exportado. Essa organicidade tem origem nas antigas Reduções Jesuíticas, conhecidas aqui no RS pelos 7 Povos das Missões.
Mas o objetivo desse artigo não é falar do passado longínquo desse vizinho, mas sim o que veio depois da Guerra, que como podemos deduzir, dizimou o país. Após a guerra, em 1887, se formou basicamente dois grupos políticos, a Aliança Nacional Republicana (Partido Colorado) e a Frente Liberal Radical Autêntica (Partido Liberal). Os Colorados assumiram o governo em 1877, antes mesmo de se formarem quanto partido, até ser deposto via golpe pelos liberais em 1903. Os Liberais então comandaram o país até 1936, sendo derrubado também via golpe pelo Partido Febrerista com apoio massivo da população. Isso se deu com o fim da Guerra do Chaco (1932-1935).
O Partido Comunista Paraguaio foi fundado em 1928, tendo grandes atuações tanto pela ação antiguerra do Chaco, quanto pelo apoio ao Movimento Febrerista, que assumiu o governo por 18 meses com forte apoio popular após a Guerra do Chaco. Desse governo surgiu o Partido Febrerista. Porém, para não fugirmos da regra,f oi deposto via golpe em 1937 pelo Partido Liberal, sob o governo do General Estigarríbia. Com a morte do General em 1940, assume a presidência o Marechal Higino Morínigo, de orientação nazifascista, permanecendo no poder no cargo até 1947, quando estoura a Guerra Civil no país guarani. Com o fim da Guerra Civil, o Partido Colorado volta ao poder.
Para ter uma idéia da instabilidade política do país vizinho, durante o período de 1947 a 1949, o governo trocou de mãos quatro vezes. Em 1954, Stroessner assume o poder através de um golpe de Estado, fazendo com que o Partido Colorado se tornasse único no país (1947-1963), e posteriormente hegemônico (1963-2008). Stroessner permaneceu no poder até 1989 por meio da força militar, e também pelas relações umbilicais junto aos EUA. Outro fator que garantiu-lhe no poder foi o apoio do Brasil junto ao país, que entre outras ações se destacam a construção da Ponte da Amizade e da Usina Hidroelétrica Binacional Itaipu, além das perseguições massivas a grupos considerados subversivos. Até 1963, como era “tradição” no país, quando alguma força política assumia, a outra era posta em ilegalidade. Em 63, Stroessner faz um novo golpe (só para não fugir da tradição) onde reconhece a oposição, que não faz muita diferença quanto ao governo. Era como se fosse o “Velho MDB de Guerra” o Partido Liberal, onde acatava as ordens do General.
Em 1989, Stroessner é deposto via golpe (falei que era tradição) e é empossado presidente General Rodriguez, um Colorado, em eleições livres. Os Colorados, foram assim sucessivamente reeleitos até 2008, quando pela primeira vez é empossado ao poder central um grupo político por via democrática, além de ser o primeiro governo de esquerda eleito pelo povo.
Antes de falar sobre o Governo de Fernando Lugo, precisamos resgatar um fato recente da história de nosso vizinho. Entre 23 a 28 de março de 1999, o assassinato do Vice-presidente Luis María Argaña, no qual o ex-general Lino Oviedo desatou uma crise cívico-militar. Como resposta espontânea, 10 mil pessoas, em sua maioria camponeses e jovens, irromperam o espaço público para defender a democracia. O Presidente Cúbas renunciou em perspectiva do início de uma Guerra Civil, e Oviedo se exilou na Argentina. Durante aquela semana, o exército foi acionado, e assim 7 jovens foram mortos nesse conflito. Esse evento ficou conhecido como Março Paraguaio.
Desde agosto de 2008, o Paraguai vive um momento ímpar de sua história, com o governo voltado para a população carente. Apesar das dificuldades do Presidente Lugo em aprovar seus projetos. Para se ter uma idéia, a Câmara dos Deputados Paraguaio é composta por 80 deputados, sendo que 30 são do Partido Colorado, 27 do Partido Liberal, 18 do Partido Unión de los Ciudadanos Éticos – UNACE – partido encabeçado por Lino Oviedo (extrema direita), e dos 08 parlamentares restante, apenas 1 é do Movimento Popular Tekojoja, do Presidente Lugo. No Senado o cenário é parecido, onde das 45 cadeiras, 15 são dos Colorados, 14 dos Liberais, 09 da UNACE, e das 07 restantes, 01 é do Partido do Presidente Lugo.
Mesmo com essa composição difícil, o nosso vizinho desconhecido está conseguindo desenvolver ações positivas para a população, especialmente a população jovem. Das Políticas Públicas voltadas para esse segmento, por exemplo, ressaltamos o movimento 5000 Proceres da Nação, que em razão do Bicentenário da Independência, convoca os jovens a darem suas opiniões sobre quais seriam as melhores políticas a serem implementadas para a galera. E 2011 já começa com novas ações, com as “Becas del Bicentenário”, que serão bolsas de estudo para os jovens carentes, porém com boas notas na escola, para os setores técnicos necessários ao país, como saúde, ciência e tecnologia, engenharia e meio ambiente. Essas bolsas serão em parceria com as hidroelétricas de Itaipu e de Yacyretá.
Esse foi um pequeno relato da história política de nosso vizinho Paraguai. Que mesmo com as adversidades históricas impostas a sua população, consegue nos últimos anos superar os obstáculos, e criar condições para sua população. Porém, as nações mais ricas do continente, em especial o Brasil, devem dar mais apoio para que eles possam se desenvolver, e se tornarem uma nação próspera, em conjunto com os países dessa nova potência mundial do Séc XXI chamada União das Nações Sulamericanas – UNASUL.


*Marcelo Voges Guerguen é Cientista Social