terça-feira, 7 de dezembro de 2010

O caminho do agrotóxico para engordar as empresas


Por Joana Tavares
Da Página do MST

O Produto Interno Bruto (PIB) agropecuário é a soma de todas as mercadorias agrícolas vendidas. Os dados disponíveis são estimativos, mas pode-se dizer que o PIB agropecuário de 2009 esteja em torno de R$ 163 bilhões, cerca de 15% do PIB total do Brasil.
Desses, calcula-se que cerca de R$ 120 bi sejam do agronegócio, e R$ 60 da agricultura familiar, não entrando no cálculo os produtos de auto-consumo.
Para entender o que significa esses R$ 163 bilhões, é necessário conhecer o modelo que sustenta a produção. Mais da metade do valor gerado – cerca de R$ 90 bi – é o volume de crédito oficial destinado para as fazendas do agronegócio.
Quase dez vezes mais a quantia do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar.(Pronaf) destinada à agricultura familiar.
A professora Rosemeire Aparecida de Almeida, da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, comparou os índices de financiamento público no MS e comprovou que as pequenas unidades de produção, com menos de 50 hectares, multiplicaram por 20 o valor do financiamento. Já a grande propriedade dividiu por dois o valor do financiamento. E são essas grandes propriedades que concentram a maioria do maquinário agrícola, o que deveria aumentar a produtividade.
“Moderna” agricultura
O Censo Agropecuário de 2006 demonstra que os tratores estão concentrados nas propriedades acima de 500 hectares, que possuem 73% do total das máquinas. “Isso demonstra que a modernização da agricultura serve somente a uma pequena parcela do campo. A sua disseminação foi desigual, o que lhe rende o rótulo de 'modernização conservadora'. Como podemos observar pelos dados do IBGE, o pacote tecnológico – mecanização, insumos e conhecimento técnico – não abrange homogeneamente toda a atividade agropecuária”, aponta Tiago Flores, estudante do mestrado de geografia humana da USP.
Para seguir o modelo da “moderna agricultura”, grande parte dos R$ 90 bi de crédito vai para o pacote máquinas-fertilizantes-venenos. E quem controla esse comércio?
São 50 grandes empresas transnacionais que controlam esse mercado, apresentarando juntas lucros acima do total do PIB agrícola.
Segundo o anuário do agronegócio, referente a 2010, os ativos das 50 empresas ficou em R$ 189 bilhões. As dez maiores controlam 51% do já oligopolizado mercado.
Deste valor, parte considerável vai para o mercado de agrotóxicos. As vendas mundiais de venenos chegaram a US$ 48 bilhões. No Brasil, o mercado cresceu 172% entre 2000 e 2009.
Venenos
Segundo dados do Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Agrícola (Sindag), somente no ano passado o mercado movimentou US$ 6,6 bilhões no país. E a expectativa é que cresça 10% na análise de 2010.
“Somando as receitas das principais empresas estrangeiras produtoras de agrotóxicos no Brasil, segundo o balanço de 2009, temos um total de R$ 14 bilhões. Este dado é muito significativo, já que revela que, do PIB agrícola como um todo, o setor de agrotóxicos abocanhou, sozinho, cerca de 10%, isso lembrando que não estão computados os dados da Monsanto. Isto significa que estamos, literalmente, comendo veneno, monopolizado pelo capital estrangeiro”, explica Larissa Mies Bombardi, professora do Departamento de Geografia USP.
Segundo João Pedro Stedile, da coordenação nacional do MST e da Via Campesina, o modelo do agronegócio leva ao consumo de venenos em larga escala. “Sempre que aumentar a área de um produto em monocultivo, mais máquinas e venenos serão necessários. Gera-se um desequilíbrio ambiental, então é preciso aumentar o uso de herbicidas (para matar as ervas), fungicidas e inseticidas para matar insetos e ainda secantes e desfolhantes na hora da colheita”, aponta.
Paulo Alentejano, Andre Campos Burigo e Alexandre Pessoa Dias, professores-pesquisadores da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) acompanham a questão dos agrotóxicos e afirmam que o controle das grandes corporações sobre a agricultura no Brasil gera concentração de renda e empobrecimento dos agricultores.
“As empresas estrangeiras, produtoras de agrotóxicos, controlam cerca de 92% da receita no setor. Considerando que nestes dados não estão incluídas as informações da receita da Monsanto - fabricante do glifosato “round up”, herbicida vendido em larga escala no Brasil e popularmente conhecido como “mata-mato” - este número é, sem dúvida, maior. Isto significa que o setor de agrotóxicos é absolutamente monopolizado pelo capital estrangeiro, particularmente estadunidense, seguido pelo suíço e pelo alemão”, aponta Larissa.
O crescimento nos últimos anos das culturas de milho, soja, cana e algodão, de acordo com os pesquisadores da Fiocruz, geram um aumento do consumo de agrotóxicos. No caso da cana, foram 6,13 litros por hectare em 2008, e 6,7 litros no milho, em 2008. Na soja, chegou a 15,14 litros e no algodão a 39,7.
Doenças
O aumento do uso de venenos agrícolas tem efeitos graves no ambiente e, inclusive, na saúde pública. Os agrotóxicos podem provocar três tipos de intoxicação: aguda, subaguda e crônica.
Na aguda, os sintomas surgem rapidamente. Na intoxicação subaguda, os sintomas aparecem aos poucos: dor de cabeça, dor de estômago e sonolência. Já a intoxicação crônica pode surgir meses ou anos após a exposição e pode levar a paralisias e doenças, como o câncer.
Um estudo publicado em abril no “Americal Journal of Epidemiology” demonstra que a exposição a pesticidas e herbicidas aumenta em até 75% o risco de desenvolver a Doença de Parkinsosn. A pesquisa foi realizada na região agrícola do estado da Califórnia, nos Estados Unidos, e mostra ainda que crianças expostas a esses produtos têm mais chance de desenvolver câncer, tumores e até leucemia.
Mesmo com todos esses indícios de que o veneno faz mal à saúde, o governo autorizou em novembro elevar em dez vezes o limite máximo de resíduo (LMR) no cultivo do milho.
Segundo matéria do jornal Valor Econômico, o índice de Ingestão Diária Aceitável (IDA), que é uma referência máxima que uma pessoa pode consumir, aumentou para 10 miligramas por quilo. O milho conterá mais resíduos à base do princípio do glifosato. Com a alteração, o agrotóxico passa a ser aplicado após o nascimento da planta.
“Isso significa que o governo está cedendo aos interesses das grandes empresas interessadas em vender esse tipo de produto”, apontam os pesquisadores da Fiocruz.

Levanta o Povo Rapa Nui

Desde o mês de julho de 2010 os Rapanui têm tomado prédios e terras que estão na mão do governo. Exigem de volta o que é seu.Por Elaine Tavares no BrasilDeFato



Elaine Tavares


Há pouco tempo o mundo inteiro acompanhou o semblante sorridente e inofensivo do novo presidente do Chile, Sebastián Piñera, durante o resgate dos mineiros que ficaram presos numa mina na região de Atacama. Mas com os povos em luta e os trabalhadores chilenos ele não é tão inofensivo assim. Por 80 dias, prisioneiros Mapuche fizeram greve de fome porque não aceitam estar presos como bandidos, se tudo o que fazem é lutar por sua terra, e o governo os tratou com brutal dureza.

Agora, nos primeiros dias de dezembro foi a vez do povo Rapanui, os que habitam a ilha de Páscoa, a ilha mais distante do continente, a 3.700 quilômetros da costa leste do Chile. Um grupo de 45 soldados fortemente armados irrompeu na comunidade recuperada pelo clã Tuko Tuki, no centro de Hanga Roa, capital da ilha. Esse espaço vem sendo reivindicado pela gente originária desde há muito tempo, sem que haja sensibilidade por parte do governo que atualmente ocupa as terras, com vários prédios públicos. Até mesmo os organismos internacionais de Direitos Humanos já reconheceram a legitimidade da demanda dos Rapanui, mas a violência desencadeada na última semana pela polícia chilena mostra o quanto isso ainda está longe de acabar.

Num único mês, mais de 35 grupos de famílias Rapanui recuperaram seus antigos terrenos que estão em mãos do governo e desde aí abriram uma ferida que
aparentemente estava fechada. Justamente por ser um dos pontos mais afastados da terra, a ilha esteve longe da cobiça dos conquistadores por muito tempo Foi só em 1722 que um navegador neerlandês chegou à ilha, exatamente num dia de Páscoa, daí este ser o nome dado ao lugar, como sempre, desrespeitando seu nome original. Porque a ilha não era um lugar deserto. Lá habitavam os Rapanui que davam ao lugar o nome de Rapa Nui, que significa ilha grande. Em 1774 um capitão inglês aportou no lugar e um século depois a ilha foi ocupada por europeus que introduziram ali a criação do gado ovino. Em 1888 a ilha foi anexada ao Chile e passou a existir como uma enorme fazenda de ovelhas, sendo o seu povo tornado escravo.

Foram muitas as lutas travadas pelo povo Rapanui pela recuperação da sua liberdade e de seu território. Mas, só em 1966 eles foram alçados à condição de cidadãos chilenos. Até então eram ninguém. Só que o povo da grande ilha nunca quis ser chileno, e nunca ninguém lhes perguntou isso. Essa cidadania foi imposta, assim como a escravidão anterior. Na gente Rapanui sempre esteve muito vivo o sentimento de sua identidade e hoje isso renasce com força total.

Desde o mês de julho de 2010 os Rapanui têm tomado prédios e terras que estão na mão do governo. Exigem de volta o que é seu. Querem o direito de dirigir suas próprias vidas, de acordo com os seus costumes. Outros prédios e terrenos ainda em mãos do estado e recebem pequenas bandeiras de Rapa Nui como um símbolo de que aquele lugar tem outro dono. Há um clima de tensão no ar. E há um renascer dos movimentos originários que, apesar das diferenças entre os clãs, voltam a se reunir e encaminhar lutas conjuntas. A recuperação do território é a mais importante.

Na última semana o governo decidiu endurecer e realizou, no amanhecer, uma brutal operação de retirada de famílias. As pessoas ainda dormiam quando a polícia chegou, derrubando portas e golpeando todo mundo. Houve reação, e muita gente acabou ferida. Fotos mostram senhoras de idade com balaços de borracha no rosto, uma das lideranças teve o olho destroçado, gente sangrando por todo o lado, alguns gravemente atingidos. Depois de toda a cena de brutalidade os soldados ainda se dispuseram a um último gesto de poder: queimaram as bandeiras de Rapa Nui, numa demonstração de desconhecimento das reivindicações e da cultura do povo autóctone. Nitroglicerina pura. As famílias originárias estão em pé de guerra.

A ilha de Rapa Nui é um importante centro turístico que recebe mais de 60 mil turistas por ano, atraídos pelos misteriosos Moais e pelas praias paradisíacas. Agora, está deflagrado um grave conflito entre o povo Rapanui e o Estado Chileno. O que as famílias querem é um diálogo aberto e respeito, muito respeito. Coisa que o ataque do dia 3 de dezembro mostra parecer impossível. A gente da ilha quer negociar, mas está disposta a lutar se preciso for. No caso deste clã que foi desalojado agora em 3 de dezembro, a reivindicação envolve um espaço de 5, 5 hectares no centro da capital. No terreno estão prédios importantes como a sede da prefeitura, o Banco do Estado e outros prédios públicos. O clã da família Hito reivindica um terreno onde está um dos mais importantes hotéis da ilha. Enfim, é uma batalha gigantesca a que está sendo travada agora naquela longínqua terra.

Quem acompanha a movimentação é o jornal Azkintwe, veículo oficial do país Mapuche. Mas, no resto do mundo poucos sabem da luta deste esplêndido povo,
esquecido no meio do pacífico.



Elaine Tavares  - jornalista.


(Com informações de Elias Paillan – Jornal Azkintwe)

Um passo corajoso na direção da paz


O Brasil anunciou o reconhecimento de um Estado palestino nas fronteiras existentes antes da Guerra dos Seis Dias de junho de 1967. O reconhecimento do estado da Palestina é a melhor maneira de tirar do estancamento as negociações de paz, buscar a estabilidade na região e aliviar a crise humanitária por que passa boa parte do povo palestino. Ao mesmo tempo Brasília condena quaisquer atos terroristas, praticados sob qualquer pretexto. O artigo é de Max Altman no Carta Maior

Em resposta a um pedido feito pelo presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, o Brasil anunciou o reconhecimento de um Estado palestino nas fronteiras existentes antes da Guerra dos Seis Dias de junho de 1967. Trata-se da concretização da legítima aspiração do povo palestino a um Estado coeso, seguro, democrático e economicamente viável, coexistindo em paz com Israel. A iniciativa do governo Lula abre caminho e favorece as imprescindíveis negociações entre Israel e os palestinos a fim de que se alcance concessões mútuas sobre outras questões centrais do conflito. O reconhecimento do estado da Palestina é a melhor maneira de tirar do estancamento as negociações de paz, buscar a estabilidade na região e aliviar a crise humanitária por que passa boa parte do povo palestino. Ao mesmo tempo Brasília condena quaisquer atos terroristas, praticados sob qualquer pretexto.

Com uma vitória militar arrasadora na Guerra dos Seis Dias, Israel ampliou seu território, muito além do estabelecido pela Partilha da Palestina, em 1948. Já em novembro de 1967, o Conselho de Segurança da ONU votou a célebre resolução 242 que determina “que a efetivação dos princípios da Carta das Nações Unidas requer o estabelecimento de uma paz justa e duradoura no Oriente Médio que inclua a aplicação dos dois seguintes princípios:

1. Evacuação das forças armadas israelenses dos territórios ocupados no
conflito recente;

2. Encerramento de todas as reivindicações ou estados de beligerância e respeito pelo reconhecimento da soberania, integridade territorial e independência política de cada Estado da região e de seu direito a viver em paz dentro das fronteiras seguras e reconhecidas, livres de ameaças ou de atos de força.

Afirma ainda a necessidade de: a - Garantia de liberdade de navegação através das águas internacionais da área; b - Conseguir um acordo justo para o problema dos refugiados; c - Garantir a inviolabilidade territorial e independência política de cada Estado da região, através de medidas que incluam a criação de zonas desmilitarizadas.

Esta resolução jamais foi respeitada por Israel sempre contando com o apoio de Washington. Levantaram-se questões semânticas - o texto não dizia evacuação de “todos” os territórios ocupados – e depois infindáveis obstáculos geoestratégicos e de diversas outras ordens. Israel argumenta agora que o reconhecimento do Brasil viola o chamado “Acordo de Oslo 2” firmado entre o israelense Itzhak Rabin e o palestino Yasser Arafat em 28 de setembro de 1995, que prevê que o status final da Cisjordânia só poderá ser definido por meio de negociações diretas, portanto qualquer ação unilateral estaria vedada. Contudo, a história registra que poucas semanas depois da assinatura desse acordo em 4 de novembro de 1995, Rabin foi assassinado. Líderes de partidos de direita, incluído muitos membros do Knesset (Parlamento), foram acusados de incitação selvagem que levaram ao acontecimento.

As eleições de 1996 deram vitória ao partido de direita Likud, e Benjamin Netanyahu assumiu como primeiro-ministro, propondo-se a torpedear o Acordo de Oslo. O resultado do pleito trouxe de volta ao poder governantes que não estavam dispostos a continuar fazendo concessões em nome da paz. Em agosto de 1996, o governo anulou o decreto que proibia a expansão dos assentamentos judaicos na Cisjordânia.

A ocupação dos territórios palestinos já leva 43 anos. Só para citar um exemplo histórico, a Alemanha, responsável pela hecatombe da Segunda Guerra Mundial que vitimou dezenas de milhões de soldados e civis, que provocou no Holocausto o extermínio de 6 milhões de judeus, ocupada, após a sua capitulação pelas forças dos países Aliados, recuperou sua independência e integridade territorial 4 anos depois, em maio de 1949 – República Federal Alemã, e em outubro de 1949 – República Democrática Alemã. Já em 1990, após a que do Muro de Berlim houve a reunificação.

Muitos países que mantêm relações intensas com Israel reconhecem a Palestina bem como a esmagadora maioria dos países representados na OBU. A iniciativa brasileira é consentânea com a postura histórica e a disposição inalterada de contribuir com o processo de paz, estando em consonância com as resoluções das Nações Unidas que exigem o fim da ocupação dos territórios palestinos e a construção de um Estado independente dentro de fronteiras reconhecidas, aquelas anteriores à Guerra dos Seis Dias. É a defesa do princípio de “Dois Estados”

Posição histórica nesse sentido também é a do Partido dos Trabalhadores. Em meados dos anos 1990, membro do coletivo da Secretaria de Relações Internacionais, respeitando criteriosamente as teses defendidas pelo Partido, ajudamos a fundar, organizar e dirigir o Movimento Shalom Salam Paz. Esse movimento congregava brasileiros de ascendência judaica, sionistas e não sionistas, de esquerda e centro-esquerda, brasileiros de ascendência árabe, moderados e menos moderados, os de ascendência palestina e todos aqueles dispostos a lutar por uma paz justa e duradoura no Oriente Médio e em particular, entre Israel e os palestinos.

Foi extremamente difícil conciliar as posições, houve pressão das Federações judaica e árabe e do consulado de Israel, porém conseguiu-se aprovar os pontos básicos: desocupação dos territórios palestinos ocupados com a Guerra de 1967; respeito à Resolução 242 das Nações Unidas com o reconhecimento pelos palestinos do Estado de Israel com fronteiras demarcadas, reconhecidas internacionalmente, seguras e definitivas; criação do Estado palestino, laico e viável; estabelecimento de Jerusalém leste e oeste como capital de ambas as nações; reconhecimento do direito de retorno dentro de limites a serem acordados; direito de acesso à água definidos em acordo binacional; facilidade do direito de ir e vir e do comércio binacional.

Forças internacionais sob a égide da ONU garantiriam o cumprimento das decisões. O Shalom Salam Paz levou essas idéias a dezenas de faculdades e colégios, a diversas instituições, deu dezenas de entrevistas a jornais, rádios e televisões, participou de debates, esteve presente nos Fóruns Sociais Mundiais. O Partido dos Trabalhadores tem relações de camaradagem com partidos e organizações de esquerda, de centro-esquerda e progressistas de todo o mundo, inclusive de Israel. As pontes que deseja construir e manter devem ser alicerçadas em princípios comuns, de soberania, de auto-determinação dos povos, de relações fraternais entre povos e nações, de solução pacífica e justa para os confrontos internacionais.

Uma diabólica espiral de sangue e dor, com raros interregnos, tomou conta da região nas últimas décadas. Guerras convencionais, ações terroristas e retaliações terroristas sem fim e com teor cada vez mais cruel e aterrador atingindo pessoas inocentes, governos árabes massacrando palestinos, assassinato de Rabin, negociações de paz torpedeadas ao sabor de interesses estratégicos e de poder, massacre de Munique e chacina de Jenin, intifada um e dois.

Desde 1948, os palestinos estão condenados a viver submetidos a uma revoltante humilhação. Perderam suas terras, perderam a liberdade e nunca puderam formar e organizar seu Estado. Hoje o cerco se estreitou e se tornou cruel. Sem permissão, não têm acesso à agua, a alimentos, a medicamentos. Não têm empregos nem vida econômica normal. Não podem ir de Gaza à Cisjordania, seus dois pedaços de terra. Não lhes permitem circular extra-muros sem passar por vexaminosos controles. Gaza se transformou numa prisão quando seus habitantes votaram em quem seus vizinhos acharam que não deveriam ter votado.

A Palestina hoje é muito menor que a que sobrou da Guerra dos Seis Dias. Colônias são assentadas em suas terras e atrás vêm os soldados corrigindo a fronteira. Se os assentamentos não são suficientes, que se erga um muro comendo mais pedaços de terra. Se olharmos comparativamente os mapas vemos que pouca Palestina restou.

Sabemos que a atual composição do eleitorado israelense levou ao governo líderes que abraçam a solução de confronto e não reconhecimento de “Dois Estados” laicos e democráticos. Se de um lado, moralmente, não pode um povo que ao longo da história sofreu o que sofreu impor a outro povo sofrimentos que tem de sofrer, de outro, só a pressão dos povos e da comunidade internacional poderá levar as partes a uma séria mesa de negociações. Geograficamente – e isto é ineludível – Israel é território do Oriente Médio, tendo como vizinhos em todas as direções países árabes.

Não é possível sentar-se o tempo todo sobre a ponta da baioneta, ao preço de transformar a nação numa simples fortaleza. Inexoravelmente, vai ter de conviver no futuro, e pacificamente, com seus vizinhos.
Contudo, a comunidade internacional deve abandonar os discursos vazios, as declarações ardilosas, a indiferença, as manifestações altissonantes, comportamentos ambíguos que servem de amparo à impunidade. Que os países árabes deixem de lavar as mãos. Que países europeus, que durante séculos costumavam praticar a caça aos judeus e há décadas passaram a cobrar essa dívida histórica dos palestinos, ponham de lado a hipocrisia de derramar umas tantas lágrimas enquanto celebram secretamente outro lance de mestre. E que os Estados Unidos deixem a parcialidade e ajudem a construir a paz justa entre Israel e palestinos, que seguramente servirá para estendê-la a outros rincões da mesma região.

(*) Max Altman é jornalista

Wikileaks, Direitos Fundamentais e Terrorismo


Rafael Tsavkko Garcia no OperaMundi


Ao ler o excelente artigo do @Prenass sobre a defesa dos direitos fundamentais frente à perseguição que vem sofrendo o site (e o líder) do WikiLeaks, notei a incrível semelhança que o tema tem com o tratamento dado por diversos Estados à questão do Terrorismo.

Primeiro o curto e direto artigo do @Prenass:

"Em meio a toda a polêmica sobre o recente vazamento de documentos oficiais da diplomacia dos EUA, chamou-me a atenção a manifestação do Ministro da Indústria Francês, Eric Besson:

“Essa situação não é aceitável. A França não pode hospedar um site na internet que viola o sigilo das relações diplomáticas e coloca as pessoas em risco.”
Sempre me incomodou que a comunidade internacional ainda não se tenha mobilizado para garantir os direitos fundamentais ligados ao uso da Internet que têm sido sistematicamente violados por países como China, Irã e Coréia do Norte. Em diversas situações, as pessoas não tem acesso à cultura, não podem se expressar livremente e de início não são tratadas como inocentes. E nenhum país toma a iniciativa de condenar isso publicamente, nenhum Estado se coloca no cenário mundial contra essas atrocidades.

Mas basta um interesse governamental ser posto em cheque, outro Estado vem ao auxílio. Essa “cavalaria” francesa segue a linha dos absurdos com que a legislação daquele país tem abordado os desafios que a cultura digital traz. A proposta de transparência pública do Wikileaks não combina com o obscurantismo e o discurso do medo que embasam iniciativas como a Hadopi. Mais do que a fala de Besson, a postura de diversos países, condenando a iniciativa de exposição de documentos, não é exatamente uma surpresa nesse momento.
Mas até quando teremos que ouvir esse ensurdecedor silêncio dos bons?"
O ministro francês, claramente, se preocupa não com a segurança de pessoas possivelmente envolvidas ou que possam ser atingidas pelos vazamentos, na verdade se importa apenas com a mensagem e o alcance potencialmente destrutivo dos vazamentos, que mostram a verdade por detrás da diplomacia praticada pelas potências.

Mentiras, hipocrisia, ameaças, abusos, são apenas alguns termos que podem iniciar a discussão.

Se o WikiLeaks fosse especializado em vazar comunicações dos países do Eixo do Mal , alguém duvida que os EUA e seu aliado fariam do líder de tal organização um homem da maior importância e dariam total proteção à ele? Não há dúvida alguma.

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O problema do WikiLeaks é que ele desnuda o Império, ele coloca em panos limpos todas as falcatruas yankees e de seus aliados.

É o mesmo que acontece com o uso político das classificações de Estado ou grupo terrorista. Por "uso político", o que pode parecer uma obviedade, eu quero dizer o uso por conveniência, com fins e objetivos políticos bem definidos que vão - muito - além da classificação com bases sociológicas. É puro interesse.

O vazamento, assim como a definição de terrorista só se aplica porque é do interesse de alguns Estados em taxar seus inimigos desta forma. Pouco importam definições clássicas ou mesmo interpretações ao pé da letra, ou mesmo subjetivas. A questão é puramente manipular opinião pública, em conivência com a mídia, sempre pronta a agradar aos donos do poder e impor sua visão da realidade.



Mas o WikiLeaks traz ainda outra questão, a da liberdade na rede, a da liberdade de se disseminar conteúdo livremente. A perseguição que vem enfrentando o grupo, perseguido tanto com o pedido de extradição fabricado contra seu líder, Assange, quanto pela negativa de diversos servidores em manter seu conteúdo online.

Concordo com Alec Duarte, editor da Folha Poder:

"A ciberperseguição a Julian Assange e seu WikiLeaks chega a ser tão perturbadora quanto reveladora ao escancarar que os governos realmente não compreenderam a internet e a completa inutilidade de tentar controlá-la."

É quase o mesmo efeito dos próprios papéis diplomáticos que o site se propôs a vazar, que apenas confirmam o que já se imaginava sobre o funcionamento da diplomacia internacional.
A disputa de gato e rato entre Assange e aqueles que querem o seu pescoço só traz à tona o que já desconfiávamos havia bastante tempo.

Quando o sociólogo espanhol Manuel Castells, provavelmente o maior pensador contemporâneo da vida em rede, afirmou que os governos têm medo da internet porque não possuem controle sobre ela, acrescentou que a tentativa de fiscalização sempre estará entre as prioridades do poder político.Trata-se do mais puro medo de Estados criminosos em ver seus segredos revelados.

De quebra, estes Estados ainda buscam punir os que os denunciam, e vigiam os que tentam defendê-lo. Isto mostra apenas que não só estes Estados Criminosos não aprendem com seus erros e crimes - na verdade apenas querem abafá-los para continuar a cometer mais alguns - como também parecem não compreender que, de vigilantes, passaram também a ser vigiados. suas ações repercutem em escala global, são acompanhadas por um mundo conectado e o repúdio vem de modo rápido e pesado.

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Os Estados claramente terroristas, buscando privar o público de conhecer a verdade sobre seus atos e decisões podres, busca, ao invés de simplesmente esclarecer e admitir culpa, censurar, perseguir e condenar àqueles que conhecem a verdade.

O crime aqui está em ter acesso aos segredos mais profundos do Estado, assim como acontece com o Terrorismo, em que grupos se rebelam contra o padrão imposto por estes mesmos Estados e mostram que nem tudo é tão belo e colorido.


*Raphael Tsavkko Garcia é mestrando em Comunicação e blogueiro. Escreve o Blog do Tsavkko e é autor e tradutor do website Global Voices Online. 

Milhares de trabalhadores foram às ruas de Porto Alegre na 15ª Marcha dos Sem



No final da tarde da sexta-feira 3, cerca de cinco mil trabalhadores do campo e da cidade participaram da 15ª Marcha dos Sem. Após um ato público em frente a Federasul, a tradicional caminhada percorreu a Avenida Borges de Medeiros até o Largo Zumbi dos Palmares, onde foi realizado o seu encerramento.
Com o lema: “Lutar para garantir direitos, avançando nas conquistas”, a Marcha iniciou com uma manifestação em frente à Federasul, no centro da capital gaúcha. Os dirigentes sindicais e representantes das federações de trabalhadores lembraram que reduzir direitos está na contramão do desenvolvimento do Estado.
“Estamos aqui para dar um recado para os empresários. A agenda que o Rio Grande do Sul precisa é a pauta dos trabalhadores, pois a agenda dos empresários é a da crise, do retrocesso”, afirmou o presidente da Confederação Nacional dos Metalúrgicos (CNM), Claudir Nespolo.
O representante da Federação dos Sapateiros, João Batista Xavier da Silva, lembrou que os trabalhadores continuarão lutando para garantir seus direitos.
Um caixão preto com palavras de ações típicas da política neoliberal como “jornada de trabalho de 44 horas”, “latifúndio”, “práticas anti-sindicais”, "privatizações", entre outras, foi deixado pelos trabalhadores na porta da Federasul.
“Esse ato é porque aqui nesse prédio são elaboradas propostas que fazem o Estado retroceder, que violam os direitos da classe trabalhadora”, explicou o presidente da CUT-RS, Celso Woyciechowski. Para ele, 13º salário, fundo de garantia, férias e uma carga horária justa não são “dádivas de patrão e sim, conquistas dos trabalhadores”.

Manifestantes lotaram as ruas do centro

Após, a Marcha partiu em direção a prefeitura de Porto Alegre onde os representantes dos movimentos sociais da moradia demonstraram sua insatisfação com o governo municipal que não regulariza áreas já ocupadas.
Em seguida, a tradicional Esquina Democrática foi o palco das manifestações dos sindicalistas. A presidente do Cpers/Sindicato, Rejane Oliveira, falou em nome dos servidores públicos. “Há 15 anos essa Marcha tem cumprido um importante papel na sociedade, de unir trabalhadores do campo e da cidade, de entidades públicas e privadas e unifica os movimentos sociais para lutar e defender nossos direitos.”
Para o representante da Conlutas, Érico Corrêa, mais uma vez os trabalhadores dizem que não vão aceitar o neoliberalismo. “Nós não vamos aceitar a desculpa da crise econômica de 2008, nós não vamos pagar essa conta”, declarou.
A necessidade da Reforma Agrária e de maiores investimentos na agricultura familiar foi defendida pelo representante da Via Campesina, Adalberto Martins (Pardal). “Estima-se que hoje, cada brasileiro consome cerca de 6 litros de venenos, devido ao uso de agrotóxicos no cultivo dos alimentos e ninguém sabe quais serão as consequências disso para a população”, salientou.

Encerramento lembrou a luta pela consciência negra

Depois de percorrerem a Avenida Borges de Medeiros, os manifestantes encerraram a Marcha com um ato no Largo Zumbi dos Palmares, devido as atividades pela consciência negra, que acontecem no mês de novembro, em todo o país.
“Desde 1996, a Marcha denuncia a corrupção reivindica os direitos dos trabalhadores e propõe políticas públicas que possibilitam o avanço do desenvolvimento. Este ano, escolhemos encerrar aqui no Largo do Zumbi, porque é uma maneira de dizer não ao racismo, não a criminalização, não ao preconceito e não ao retrocesso”, declarou Woyciechowski.

Com informações da CUT-RS

As reformas da estrutura sindical

  Waldemar Rossi   no Correio da Cidadania
 
Getúlio Vargas nos deixou um legado negativo e nefasto ao constituir os sindicatos oficiais. Operários despolitizados não conseguiam ver que o atrelamento dos sindicatos ao Ministério do Trabalho e sua concepção como "Órgão de colaboração com o Estado" eram contrários aos verdadeiros interesses da Classe Operária emergente. Vargas procurou um meio de segurar as lutas coletivas dos operários, lutas que vinham num crescente permanente, porque iriam contra seus planos de alavancar o desenvolvimento industrial nacional. Seu projeto capitalista – embora de caráter nacional – não poderia admitir contestações, sobretudo das forças de esquerda (comunistas e anarquistas) que tinham expressão no sindicalismo sem controle do Estado.
 
Além do seu atrelamento ao Estado, Getúlio implantou o sistema da "unicidade", em que só poderia haver um sindicato da mesma categoria num município. Aí vão duas idéias em uma só orientação: sindicato único por cidade e sindicato por categoria profissional, o que permite a presença de vários sindicatos numa mesma empresa. Por exemplo: na indústria "X", metalúrgica, atuam, além do sindicato da categoria prevalecente, os sindicatos dos desenhistas, dos engenheiros, dos contabilistas, da construção civil, dos funcionários da limpeza, dos economistas e assim por diante. O resultado dessa multiplicidade se contrapõe à concepção da unicidade, porque, se de um lado garante um único sindicato no município, também promove a pulverização na mesma empresa. Conseqüência: ampla divisão dos trabalhadores e enfraquecimento de suas lutas. DIVIDIR PARA REINAR!
 
Essa pulverização tem se mostrado danosa para a classe trabalhadora porque impede que todos os trabalhadores de uma mesma empresa se unam para exigir direitos comuns. Até mesmo nas campanhas salariais essa pulverização se revela prejudicial, uma vez que as condições de trabalho são comuns a todos que na mesma empresa trabalham. Dificulta a organização de todos, dividindo os trabalhadores e muitas vezes jogando-os uns contra os demais. E isso interessa ao capital e ao "peleguismo" (dirigentes sindicais que fazem o jogo do patronato) de milhares de "dirigentes" sindicais que vivem da exploração dos próprios companheiros, pois seus salários saem do imposto/contribuição sindical compulsoriamente descontado em folha de pagamento. Ora, como querer acabar com essa iniqüidade que é a multiplicidade incontrolada de sindicatos inexpressivos, se isto é uma forma de bancar dirigentes sindicais burocratas e de bem com a vida? Para se ter uma idéia de quanto esse sistema sindical é nefasto, basta saber que existem 23.000 sindicatos oficiais no Brasil, cujos dirigentes agem como sanguessugas dos seus "dirigidos".
 
Se Getúlio Vargas prestou um enorme desserviço à Classe Operária e ao conjunto dos trabalhadores, a "reforma" posta em prática por Lula foi ainda pior. Ao garantir que as Centrais Sindicais abocanhem 10% da "contribuição" sindical arrecadada em nível nacional, nada mais fez que criar uma nova classe de pelegos que terão muito dinheiro sob seu controle, tornarão seus já gordos salários ainda mais elevados, permitir muita manobra entre aqueles que se postam como seus cupinchas, em troca de bons salários, carros à disposição e que farão o papel desmobilizador de suas categorias.
 
As reformas sindicais que todos esperávamos que Lula fosse pôr em prática eram a da total independência em relação ao Estado, com ampla liberdade de organização, e que fossem constituídos sindicatos por Ramo de Produção, segundo as decisões da CUT em seus congressos. Isto é: que em uma mesma empresa vigorasse o sindicato da categoria principal, unificando os trabalhadores, em vez de dividi-los e subdividi-los. Nada disso aconteceu. Muito ao contrário: manteve-se o registro no Ministério do Trabalho e reforçou-se a estrutura vertical que funciona como uma pirâmide, onde os pouquíssimos de cima exploram os milhões da base.
 
Felizmente ainda existem os trabalhadores que têm senso crítico, foram formados para a libertação e não engolem as iscas patronais, dos políticos corruptos e dos sindicalistas vendidos aos interesses do capital e/ou que agem em vista apenas de seus interesses egoístas. Aos que ainda resistem - hoje situados na Conlutas e na Intersindical, ao lado de tantos outros que não se alinham a nenhuma dessas correntes, mas que comungam com as mesmas perspectivas -, cabe unir esforços para lutar por uma estrutura sindical que rompa com o autoritarismo das cúpulas, contra qualquer forma de atrelamento ao Estado ou a partidos políticos, que viva das contribuições espontâneas dos seus sindicalizados, e partir para um comum e solidário entendimento sobre o tipo de organização sindical que melhor venha a responder aos interesses de toda a classe trabalhadora.
 
Assim se torna necessário empregar bom tempo para promover o necessário entendimento que se dará através de intercâmbio de experiências e busca de soluções comuns. É indispensável que haja disposição para se pensarem tais mudanças a partir das experiências em torno do sindicato por Ramo de Produção, ao mesmo tempo em que se garanta sua organização horizontal. E esta organização horizontal será fundamental para impedir que a burocratização torne os Sindicatos por Ramo em sindicatos corporativos, contrários à verdadeira solidariedade classista. E não se pode esquecer que a organização dos trabalhadores no local de trabalho deve voltar a ser fonte das energias tão necessárias ao nosso hoje combalido sindicalismo. Sem essa organização de base, o sindicalismo se torna ineficaz contra a exploração.
 
Nos próximos anos, sob o governo de Dilma Rousseff, a Reforma Sindical deverá vir à tona novamente. Será fundamental a presença da forças classistas organizadas e afinadas entre si para se oporem ao interesses mesquinhos das centrais sindicais atreladas ao governo e a serviço da exploração capitalista.
 
Waldemar Rossi é metalúrgico aposentado e coordenador da Pastoral Operária da Arquidiocese de São Paulo.

No Brasil, de prisioneira a Presidente - Entrevista com Dilma Rousseff


Integra da entrevista de Dilma Rousseff ao Washington Post, com tradução de Paula Marcondes e Josi Paz, revisão de Idelber Avelar. Extraido do blog do Cadu


Ter sido uma presa política lhe dá mais empatia com outros presos políticos?

Sem dúvida. Por ter experimentado a condição de presa política, tenho um compromisso histórico com todos aqueles que foram ou são prisioneiros somente por expressarem suas visões, sua opinião pública, suas próprias opiniões.

Então, isso afetará sua política em relação ao Irã, por exemplo? Por que o Brasil apóia um país que permite o apedrejamento de pessoas, que prende jornalistas?

Acredito que é necessário fazermos uma diferenciação no [que queremos dizer quando nos referimos ao Irã]. Eu considero [importante] a estratégia de construir a paz no Oriente Médio. O que vemos no Oriente Médio é a falência de uma política – de uma política de guerra. Estamos falando do Afeganistão e do desastre que foi a invasão ao Iraque. Não conseguimos construir a paz, nem resolver os problemas do Iraque. Hoje, o Iraque está em guerra civil. Todos os dias, morrem soldados dos dois lados. Tentar trazer a paz e não entrar em guerra é o melhor caminho.

[Mas] eu não endosso o apedrejamento. Eu não concordo com práticas que possuem características medievais [quando se trata de] mulheres. Não há nuances; não faço concessões nesse assunto.

O Brasil se absteve em votar na recente resolução sobre os direitos humanos na ONU .

Eu não sou Presidente do Brasil [hoje], mas eu me sentiria desconfortável, como mulher eleita Presidente, não dizendo nada contra o apedrejamento. Minha posição não vai mudar quando eu assumir o cargo. Eu não concordo com a forma em que o Brasil votou. Não é minha posição.

Muitos norte-americanos sentiram empatia pelo povo iraquiano iraniano que se rebelou nas ruas. Por isso me pergunto se sua posição sobre o Irã seria diferente daquela do seu atual Presidente, que possui boa relação com o regime iraquiano iraniano.

O Presidente Lula tem seu próprio histórico. Ele é um presidente que defendeu os direitos humanos, um presidente que sempre apoiou a construção da paz.

Como a Sra. vê a relação do Brasil com os EUA? Como gostaria de vê-la evoluir?

Considero a relação com os EUA muito importante para o Brasil. Tentarei estreitar os laços. Eu admirei muito a eleição do Presidente Obama. Acredito que os EUA revelaram uma grande capacidade de mostrar que são uma grande nação, e isso surpreendeu o mundo. Pode ser muito difícil ser capaz de eleger um Presidente negro nos os EUA - como era muito difícil eleger uma mulher Presidente do Brasil.

Eu acredito que os EUA têm uma grande contribuição a dar ao mundo. E, acima de tudo, acredito que o Brasil e os EUA têm um papel a cumprir juntos no mundo. Por exemplo, temos um grande potencial para trabalhar juntos na África, porque na África podemos construir uma parceria para disponibilizar tecnologias agrícolas, produção de biocombustíveis e ajuda humanitária em todos os campos.

Também acredito que, neste momento de grande instabilidade por causa da crise global, é fundamental que encontremos formas que garantam a recuperação das economias dos países desenvolvidos, porque isso é fundamental para a estabilidade do mundo. Nenhum de nós no Brasil ficará confortável se os EUA mantiverem altos índices de desemprego. A recuperação dos EUA é importante para o Brasil porque os EUA têm um mercado consumidor fantástico. Hoje, o maior superávit comercial dos EUA é com o Brasil.

A Sra. culpa o afrouxamento monetário [quantitative easing] por isso?

O afrouxamento monetário é um fato que nos preocupa muito, porque significa uma política de desvalorização do dólar que tem efeitos sobre o nosso comércio exterior e também na desvalorização da nossas reservas de divisas, que são em dólares. Para nós, uma política de dólar fraco não é compatível com o papel que os EUA têm, já que a moeda dos EUA serve como reserva internacional. E uma política sistemática de desvalorização do dólar pode provocar reações de protecionismo, que nunca é uma boa política a ser seguida.

Quando a Sra. planeja visitar os EUA? Sei que foi convidada para antes de sua posse, em 1º de janeiro, mas não podia ir.

Eu não estou aceitando os convites que recebo. Não estou visitando países estrangeiros. Tenho que montar o meu governo. Tenho 37 ministros para nomear. Estou planejando visitar o Presidente Barack Obama nos primeiros dias após minha posse, se ele me receber.

Então a Sra. convidará o Presidente Obama para vir ao Brasil?

Nós já o convidamos informalmente, durante a reunião do G-20.

Há preocupações na comunidade empresarial dos EUA sobre se o Brasil continuará o caminho econômico definido pelo Presidente Lula.

Não há dúvida sobre isso. Por quê? Porque para nós foi uma grande conquista do nosso país. Não é uma conquista de uma única administração - é uma conquista do Estado brasileiro, do povo de nosso país. O fato de que conseguimos controlar a inflação, ter um regime de câmbio flexível e ter a consolidação fiscal de forma que, hoje, estamos entre os países com a menor relação dívida / PIB do mundo. Além disso, temos um déficit não muito significativo. Não quero me gabar, mas temos um déficit de 2,2 por cento. Pretendemos, nos próximos quatro anos, reduzir a proporção dívida / PIB para garantir essa estabilidade inflacionária.

A Sra. disse publicamente que gostaria de ver as taxas de juro caírem. A Sra. irá cortar o orçamento ou reduzir o aumento anual de gastos do governo?

Não há como cortar as taxas de juros a menos que você reduza seu déficit fiscal. Somos muito cautelosos. Temos um objetivo em mente: que as nossas taxas de juros sejam convergentes com as taxas de juros internacionais. Para conseguir chegar lá, um dos pontos mais importantes é a redução da dívida pública. Outra questão importante é melhorar a competitividade de nossos setores agrícola e de manufatura. Também é muito importante que o Brasil racionalize seu sistema fiscal.

Se a Sra. quer baixar as taxas de juros, a Sra. tem que cortar os gastos ou aumentar a economia doméstica.

Você não pode se esquecer do crescimento econômico. Você tem que combinar muitas coisas.

Qual é seu plano?

Meu plano é continuar a trajetória que seguimos até aqui. Conseguimos reduzir nossa dívida de 60% para 42%. Nosso objetivo é atingir 30% do PIB. Eu preciso racionalizar os meus gastos e, ao mesmo tempo, ter um aumento do PIB, que leve o país adiante.

Então o que a Sra. quer dizer com “racionalizar gastos”?

Não estamos em uma recessão aqui. Nós não temos que cortar os gastos do governo. Nós vamos cortar despesas, mas vamos continuar a crescer.

Estamos seguindo um caminho muito especial. Este é um momento no qual o país está crescendo. Temos estabilidade macroeconômica e, ao mesmo tempo, muito orgulho do fato de que conseguimos reduzir a extrema pobreza no Brasil.

Trouxemos 36 milhões de pessoas para a classe média. Tiramos 28 milhões da pobreza extrema. Como conseguimos isso? Políticas de transferência de renda. O Bolsa Família é um dos maiores exemplos.

Explique como funciona o Bolsa Família.

Pagamos um estipêndio, que é uma renda para os pobres. Eles recebem um cartão e sacam o dinheiro, mas têm duas obrigações a cumprir: colocar seus filhos na escola e provar que eles comparecem a 80% das aulas. Ao mesmo tempo, as crianças também devem receber todas as vacinas e passar por uma avaliação médica quando recebem as vacinas. Esse foi um fator, mas não foi o único.

Criamos 15 milhões de novos empregos durante a administração do Presidente Lula. Este ano, já criamos 2 milhões de novos empregos.

A Sra. é tão próxima do Presidente Lula. Será mesmo diferente ou apenas uma continuação da administração dele?

Eu acredito que minha administração será diferente da do Presidente Lula. O governo do Presidente Lula, do qual fiz parte, construiu uma base a partir da qual vou avançar. Não vou repetir a administração dele porque a situação no país hoje é muito melhor do que era em 2002.

Eu tenho os programas governamentais em andamento, que ajudei a desenvolver, como o chamado Minha Casa, Minha Vida, que é um programa de habitação.

Meus desafios são outros. Vou ter que solucionar questões como a qualidade da saúde pública no Brasil. Vou ter que criar soluções para problemas de segurança pública.

O Brasil passou por mais de 30 anos sem investir em infra-estrutura em uma quantidade suficiente. O governo do Presidente Lula começou a mudar isso. Eu tenho que resolver as questões rodoviárias no Brasil, as ferrovias, as estradas, os portos e os aeroportos.

Mas há uma boa notícia: descobrimos petróleo em águas profundas.

A Sra. está sugerindo que essa descoberta irá financiar a infra-estrutura?

Criamos um Fundo Social [no qual] alguns dos recursos do governo oriundos da descoberta do petróleo serão investidos em educação, saúde, ciência e tecnologia.

A Sra. tem que preparar o pais para a Copa do Mundo e para as Olimpíadas.

Sim, mas eu também tenho outro compromisso, que é acabar com a pobreza absoluta no Brasil. Nós ainda temos 14 milhões na pobreza. Esse é meu maior desafio.

Todos os empresários que conheci em São Paulo disseram que precisam estar muito preparados para as reuniões com a Sra., porque a Sra. conhece bem a maioria dos projetos.

Sim, é verdade. Eu acho que é uma característica feminina. Nós apreciamos os detalhes. Eles, não.

O que significa, para a Sra., ser a primeira mulher Presidente do Brasil?

Até eu acho incrível.

Quando a Sra. decidiu que queria ser Presidente?

Foi um processo. Não há uma data. Comecei a trabalhar com o Presidente Lula e ele começou a dar algumas dicas sobre eu vir a ser indicada à presidência, mas ele não foi claro no começo. Foi uma grande honra para mim, mas eu não estava esperando.

A partir do momento que ficou claro para mim que eu seria indicada, dois anos atrás, eu sabia que tínhamos criado as condições adequadas para tornar possível a vitória nas eleições. O Presidente Lula teve uma excelente administração e o povo brasileiro reconheceu e admitiu isso. Somos uma administração diferente - nós ouvimos o povo.

A Sra. recentemente lutou contra o câncer.

Sim, mas acredito que consegui lidar bem com isso. As pessoas têm que saber que o câncer pode ser curado. Quanto mais cedo você descobre, melhores suas possibilidades de cura. É por isso que a prevenção é importante. . . .

Acredito que o Brasil estava preparado para eleger uma mulher. Por quê? Porque as mulheres brasileiras conquistaram isso. Eu não cheguei aqui sozinha, só pelos meus méritos. Somos a maioria neste país.




Margem Esquerda n° 15 debate papel transformador do Estado



A edição n° 15 da revista Margem Esquerda (Boitempo Editorial) se propõe a discutir as possibilidades e os dilemas de transformação relacionados ao novo tipo de Estado da América Latina. O desenvolvimento criativo é irregular no continente. Desenvolvimento, democracia e bem-estar social convivem, sob tensão, nas propostas políticas de países como Bolívia, Brasil e Equador. O dossiê deste número, sobre teorias do Estado na América Latina hoje, apresenta visões distintas sobre o papel dos instrumentos de poder na economia e na política.

O papel transformador do Estado ressurge nas perspectivas de transformação social com experimentos institucionais democráticos na América Latina. Desenvolvimento, democracia e bem-estar social convivem, sob tensão, nas propostas políticas de países como Bolívia, Brasil e Equador. Na tradição marxista, as experiências latino-americanas viram as páginas do Estado mínimo neoliberal e do socialismo de Estado soviético. A Margem Esquerda se propõe a discutir as possibilidades e os dilemas de transformação relacionados ao novo tipo de Estado da América Latina.

O desenvolvimento criativo é irregular no continente. O dossiê deste número, sobre teorias do Estado na América Latina hoje, apresenta visões distintas sobre o papel dos instrumentos de poder na economia e na política. Traz a transcrição do discurso do vice-presidente boliviano, Álvaro García Linera, ao receber o título de doutor honoris causa na Universidade de Buenos Aires, que define as possibilidades de transformação social por meio de políticas estatais. Especialmente em países como Bolívia e Equador pretende-se refundar o Estado para construir instituições adequadas à representação da massa da população, especialmente a nativa, e não mais de elites minoritárias. O economista Marcio Pochmann coloca os desafios do Estado para corresponder aos projetos de desenvolvimento no Brasil, sobretudo no governo de Dilma Rousseff. A socióloga argentina Mabel Thwaites Rey monta uma síntese crítica das teorias marxistas clássicas e das novas contribuições dos processos inovadores na América Latina.

As ilustrações desta edição, de Regina Silveira – selecionadas pelo artista plástico Sérgio Romagnolo –, remetem aos novos rumos e desafios latino-americanos. Nascida em 1939, no Rio Grande do Sul, a artista se coaduna a uma redisposição das linhas modernistas, em assemblages aparentemente incoerentes. Em texto de 1997, o historiador e crítico de arte Walter Zanini afirmou que a obra de Regina Silveira lembra uma “geometria do absurdo”, com elementos de ordem emotiva e sensorial que parodiam as linhas fechadas.

Esta Margem Esquerda também conta com uma entrevista concedida por José Saramago – que morreu em junho deste ano em Lanzarote, nas Ilhas Canárias (Espanha), aos 87 anos – em junho de 1992, ano de lançamento do romance O Evangelho segundo Jesus Cristo.

A seção de artigos se inicia com reflexões de David Harvey e Michael Löwy, dois dos principais pensadores marxistas da atualidade. Harvey reconstrói a teoria da mudança social marxiana e discute a organização da transição anticapitalista. Salienta a dialética entre esferas do sistema de relações sociais, contradições fundamentais do capitalismo e campos de luta abertos para movimentos sociais e partidos de esquerda. Löwy reconstitui o pensamento de Rosa Luxemburgo, tomando como fio condutor a leitura do marxismo como filosofia da práxis, que percorre o conjunto da obra da revolucionária polonesa, em especial os textos redigidos após o advento da Primeira Guerra Mundial, como “A crise da social-democracia”.

Completam a seção textos de Anita Simis, sobre o impacto do celular na produção e difusão do entretenimento; de Sérgio de Souza Brasil, sobre a crítica do progresso de Walter Benjamin; e de Luiz Bernardo Pericás, sobre José Carlos Mariátegui e o México.

Margem Esquerda traz uma homenagem de Miguel Urbano Rodrigues ao marxista francês Georges Labica, recentemente falecido. Na seção “Comentário”, Nicolas Tertulian apresenta a correspondência de Ernst Bloch a diversos pensadores marxistas, especialmente Lukács. Este número traz ainda resenhas de Antonino Infranca, Mauro Iasi e Plínio de Arruda Sampaio Jr., tratando, respectivamente, dos fenômenos do stalinismo, do capital-imperialismo e da crise estrutural do capital. A revista fecha com uma poesia popular mexicana, “Corrido da morte de Zapata”, de Armando List Arzubide. Selecionado e traduzido por Flávio Aguiar, o poema é uma homenagem ao centenário da Revolução Mexicana.

Sumário

ENTREVISTA
José Saramago

IVANA JINKINGS

DOSSIÊ: TEORIAS DO ESTADO NA AMÉRICA LATINA HOJE

A construção do Estado - ÁLVARO GARCÍA LINERA

O Estado e seus desafios na construção do desenvolvimento brasileiro -
MARCIO POCHMANN

O Estado em debate: transições e contradições - MABEL THWAITES REY

ARTIGOS

Organizando para a transição anticapitalista - DAVID HARVEY

A centelha se acende na ação: a filosofia da práxis no pensamento de Rosa Luxemburgo - MICHAEL LÖWY

Celular móvel: outra morada de entretenimento - ANITA SIMIS

A barbárie como civilização: Walter Benjamin e a tragédia humana - SÉRGIO DE SOUZA BRASIL SILVA

José Carlos Mariátegui e o México - LUIZ BERNARDO PERICÁS

HOMENAGEM

Homenagem a Georges Labica na Universidade de Argel
MIGUEL URBANO RODRIGUES

COMENTÁRIO

Ernst Bloch e György Lukács, paradoxos de uma amizade
NICOLAS TERTULIAN

RESENHAS

Stalin e a ditadura sobre o proletariado
ANTONINO INFRANCA

A natureza da crise e os dilemas da revolução
PLÍNIO DE ARRUDA SAMPAIO JR.

O capital-imperialismo: determinações econômicas e formas políticas
MAURO LUIS IASI

POESIA

Corrido da morte de Zapata
ARMANDO LIST ARZUBIDE

APRESENTAÇÃO DAS IMAGENS

Quebra-cabeça da América Latina (continua...)
REGINA SILVEIRA

Fotos: Divulgação

Ano novo, mais mercado, mesmo trabalho

Vai chegando o final do ano, vão aparecendo os textos reflexivos na internet. Bem, pelo menos ainda não chegou a época das restrospectivas… Mas é importante levantar este debate, tendo em vista que o pessoal esquece que a integração plena ao maravilhoso mundo novo do mercado global pode ser bom para alguns, mas não para todos.
A reestruturação dos processos de produção mundiais provocou mudanças significativas na forma como as empresas organizam as suas operações e relações comerciais. Desde os anos 1970, a geografia da produção foi transformada de acordo com a atuação das empresas líderes que têm cada vez mais terceirizado grande parte do processo de produção para fornecedores de economias em desenvolvimento e emergentes, formando cada vez mais complexas redes de produção global (RPGs) e estimulando a expansão da produção das indústrias agroalimentares e de serviços nesses setores da economia global. Os setores mais importantes de economias emergentes e mais pobres também têm se tornado mais integrados em RPGs, impulsionados por estratégias de desenvolvimento destinadas a promover essa integração, e transformadas, neste contexto, pela dinâmica da concorrência e pelas exigências da competitividade global. Em ambos os processos, a evolução das redes de produção globais tem simultaneamente resultado e facilitado uma profunda reestruturação nos mercados de trabalho que os sustentam, juntamente com os padrões associados a tipos de emprego e de trabalho. Tenho realizado um extenso estudo em parceria com Nicola Phillips, do Centro de Estudos em Pobreza Crônica, da Universidade de Manchester sobre o tema, do qual trago algumas rápidas colocações a pedido de alguns leitores.
A forma na qual os produtores mais pobres e os trabalhadores têm ampliado sua participação nas RPGs está atraindo uma atenção crescente. Uma grande parte da teoria clássica e contemporânea, associada principalmente ao trabalho e o legado de Joseph Schumpeter e Karl Marx, estabeleceu que o desenvolvimento capitalista puxa para direções diferentes e gera um processo intrínseco de desenvolvimento desigual. O funcionamento e o impacto da RPGs contemporâneas revelam a mesma dinâmica de crescimento e de desenvolvimento desiguais. A modernização econômica seletiva é propelida por algumas partes da economia e para alguns grupos de trabalhadores enquanto formas que poderiam ser chamadas de “degradação” são empurradas para dentro e para outros grupos. Os impactos diferenciais são muitas vezes sentidos por grupos de trabalhadores do mesmo setor ou indústria, já que o desenvolvimento capitalista produz uma segmentação do mercado de trabalho e se baseia em um aumento de demarcação entre os segmentos primários e secundários da força de trabalho.
O cada vez mais complexo processo de expansão das RPGs pode gerar novas oportunidades de emprego para trabalhadores, oferecendo novas fontes de renda para famílias. Mas, enquanto alguns trabalhadores se beneficiam de maiores salários e proteção social e trabalhista em processo de melhora, para a maioria que está nos mercados de trabalho associados com RPGs, este padrão está relacionado a uma “incorporação adversa”, caracterizada por formas de exploração do trabalho e do emprego inseguro e desprotegido. Há dados que indicam um crescimento substancial neste tipo de emprego “precário” e nos números de trabalhadores altamente vulneráveis na economia global, sobretudo porque o uso de trabalho pouco qualificado, mal remunerado, migrante e por empreita tornou-se progressivamente central para a atividade econômica em redes de produção.
Em outras palavras, a participação em redes de produção globais pode proporcionar oportunidades de emprego e renda para parte dos mais pobres, sob algumas condições e em alguns contextos, mas em outros (que acredito, pelos dados, ser a maior parte dos casos) as condições de pobreza são exploradas e as relações de pobreza são reforçadas, levando a uma reprodução de vulnerabilidade, privação e marginalização. Temos visto que os trabalhadores mais vulneráveis no Brasil e, especificamente, aqueles classificados como trabalhadores escravos no setor da pecuária, por exemplo, representam um exemplo de incorporação adversa em que a dinâmica deste processo agrava as condições de necessidade crônica e priva o trabalhador de um controle de curto e longo prazo sobre seus bens (incluindo o trunfo do trabalho) e renda. Nesse caso, a perda de controle que uma pessoa experimenta devido à pobreza ou à indigência é reforçada pelo capital na sua criação e/ou apropriação de um grande conjunto de excedente de trabalho vulnerável e informal e, por sua vez, esta perda de controle é reforçada pela forma de incorporação adversa, inclusive – no extremo – do trabalho escravo.
Temos visto que existem várias dimensões a esta dinâmica circular. Como em todas as RPGs, o último elo na cadeia de valor do gado não é relacionado com o produtor, mas sim com o trabalho utilizado por ele. As pressões comerciais inerentes nas cadeias de valor, especialmente para a redução de preço são, finalmente, transferidas para os trabalhadores rurais. Em outras palavras, o conflito e a concorrência entre facções de capital são expressas através de relações de trabalho. Isto se manifesta em diferentes formas de exploração, incluindo as formas extremas como trabalho escravo ou infantil. Estes tipos de exploração por sua vez atuam de maneiras variadas para manter os padrões de pobreza crônica nas regiões-chave da oferta de trabalho e entre os próprios trabalhadores. O dinheiro que teria sido dividido em salários e outros benefícios aos trabalhadores no âmbito das relações de trabalho fica para os produtores rurais e/ou flui à cadeia de valor na qual a fazenda está conectada. Condições voláteis de negócios e comércio em RPGs, juntamente com os padrões de flutuação da demanda, no sentido de reforçar as formas altamente flexíveis, precárias e inseguras de emprego, por sua vez reforçam as condições de necessidade crônica que modelam as estratégias de emprego e as decisões dos trabalhadores.
A pobreza não pode ser entendida exclusivamente com referência a uma medida estatística de renda, por razões de natureza multifacetada da pobreza que estão bem estabelecidas na literatura acadêmica e porque, no caso brasileiro, as práticas de trabalho escravo podem implicar uma remuneração, mesmo quando as condições de trabalho e de existência humana envolvidas neste tipo de relação são degradantes, desumanas e altamente abusivas. A chave nesses casos é que a extensão de insegurança e instabilidade de emprego e renda limitam profundamente as possibilidades de acumulação por parte do trabalhador e, conseqüentemente, são fundamentais na constituição das formas de vulnerabilidade que estamos discutindo. Esta situação de trabalho precário e intermitente expressa como as formas de inclusão e exclusão podem atuar em conjunto para produzir impotência e vulnerabilidade e reforçar as relações de trabalho altamente exploradoras.
Por fim, formas de exploração não-contratual extrema como o trabalho escravo não pode ser visto como uma aberração ou desvio do normal funcionamento do capitalismo em geral e das RPGs em particular, rejeitando a tendência presente em muitas partes dos debates acadêmicos e políticos de imaginar que uma separação precisa ser estabelecida entre estas práticas e outras formas de exploração do trabalho “normal”. Pelo contrário, esses fenômenos complexos devem ser conceituados como associados ao funcionamento normal dos mercados em questão e responde ao mesmo conjunto de pressões de mercado e de forças (com diferentes níveis e tipos de exploração) presentes ao longo da cadeia de valor. Eles representam uma manifestação extrema e uma forma de incorporação adversa, mas mesmo assim permanece em evidência em toda a economia global.