sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Como nasceu e como morreu o «Marxismo Ocidental»


Domenico Losurdo

Porque é que, depois de ter gozado de uma extraordinária fortuna nos anos sessenta e setenta, o marxismo caiu no Ocidente numa crise tão profunda? Vale a pena tomar como ponto de partida um debate de 1954 provocado por Norberto Bobbio. Este, embora justamente insistindo no carácter irrenunciável da liberdade «formal», conta a favor dos Estados socialistas o terem «iniciado uma nova fase de progresso civilizacional em países politicamente atrasados, introduzindo instituições tradicionalmente democráticas, de democracia formal como o sufrágio universal e a electividade dos cargos, e de democracia substancial como a colectivização dos instrumentos de produção». E, no entanto – é a conclusão crítica ¬– o novo «Estado socialista» ainda não foi capaz de transplantar para o seu seio o governo da lei e os mecanismos garantistas liberais, ainda não foi capaz de proceder à «limitação do poder» e deitar «uma gota de óleo [liberal] nas máquinas da revolução já realizada». Como se vê, estamos longe das posições assumidas pelo filósofo turinês na última fase da sua evolução, quando se torna em última análise um ideólogo da guerra do Ocidente: em 1954 são grandes a influência do marxismo e o prestígio dos países que dele se reclamam; neste momento, juntamente com a «democracia formal» Bobbio teoriza também uma «democracia substancial»; aliás, sobre os países socialistas exprime um juízo que não é univocamente negativo nem sequer no que respeita à «democracia formal».
Quais são as reacções dos intelectuais comunistas italianos? Para rejeitar ou atenuar as críticas dirigidas em primeiro lugar à União Soviética, como justificação parcial do atraso, eles poderiam ter aduzido o estado de excepção permanente imposto ao país nascido da revolução de Outubro e a ameaça de aniquilação nuclear que continuava a pairar sobre ele. Galvano della Volpe segue contudo uma estratégia absolutamente diferente, concentrando-se na celebração da libertas maior (o desenvolvimento concreto da individualidade garantido pelas condições materiais de vida). Assim, por um lado desvalorizam-se as garantias jurídicas do Estado de direito, implicitamente degradadas a libertas minor; e por outro, acaba-se por valorizar a transfiguração a que procede Bobbio da tradição liberal como campeã da causa do gozo universal pelo menos dos direitos civis, da liberdade formal. E contudo em 1954 ainda está de pé o sistema colonial e dentro do seu âmbito é claro que não se respeita nenhuma liberdade; nos próprios Estados Unidos os negros continuavam a ser largamente excluídos dos direitos políticos e, muitas vezes, até dos direitos civis (no Sul ainda não desaparecera o regime de segregação racial e de white supremacy). Todo empenhado na celebração da libertas maior, Della Volpe não se preocupa ou não é capaz de chamar a atenção para o clamoroso infortúnio de Bobbio.
O facto é que o marxismo ocidental daqueles anos se caracteriza largamente pelo menosprezo da questão colonial. Em 1961 Ernst Bloch publica Direito natural e dignidade humana. Como já emerge do título, estamos bem longe da desvalorização cara a Della Volpe da libertas minor; pelo contrário é explícita a reivindicação da herança da tradição liberal, submetida contudo a uma crítica que infelizmente mais parece uma transfiguração. Bloch censura ao liberalismo o propugnar uma «igualdade formal e apenas formal». E acrescenta: «Para se impor, o capitalismo só está interessado na realização de uma universalidade da regulamentação jurídica, que tudo abrange de modo igual».
Esta afirmação pode-se ler num livro cuja publicação é do mesmo ano em que em Paris a polícia desencadeia uma impiedosa caça aos argelinos, afogados no Sena ou mortos à bastonada; e tudo à luz do sol, aliás perante a presença de cidadãos franceses que, sob a protecção do governo da lei, assistem divertidos ao espectáculo: qual «igualdade formal»! Na própria capital de um país capitalista e liberal vemos em acção uma dupla legislação, que entrega ao arbítrio e ao terror policial um grupo étnico bem determinado. Se depois tomarmos em consideração as colónias e as semi-colónias e virarmos os olhos por exemplo para a Argélia ou para o Quénia ou para a Guatemala (um país formalmente livre mas de facto sob o protectorado estado-unidense), vemos o Estado dominante, capitalista e liberal, recorrer em grande escala e de modo sistemático às torturas, aos campos de concentração e às práticas genocidas contra os indígenas. De nada disto há sinais, nem em Bobbio, nem em Della Volpe nem em Bloch.
Contudo, é precisamente nestes anos que começa a desenvolver-se nos EUA a luta dos afro-americanos. É um assunto que atrai as atenções da China de Mao Zedong, e pode ser interessante comparar as tomadas de posição de duas personalidades tão diferentes entre si. Se Bloch denuncia o carácter meramente «formal» da igualdade liberal e capitalista, o dirigente comunista chinês procede de modo bem diferente. Certamente, sublinha que os negros sofrem uma taxa nitidamente mais alta de desemprego em relação aos brancos, são relegados para os segmentos inferiores do mercado do trabalho e obrigados a contentar-se com salários reduzidos. Mas não é tudo: Mao chama a atenção para a violência racista desencadeada pelas autoridades do Sul e pelos bandos por elas tolerados ou encorajados e celebra «a luta do povo negro americano contra a discriminação racial e pela liberdade e igualdade de direitos». Bloch critica a revolução burguesa pelo facto de ela «ter limitado a igualdade à política»; em referência aos afro-americanos, Mao recorda que «a maior parte deles está privada do direito de voto».
Ressoam tons análogos no Vietname, onde está em curso uma grande luta de libertação nacional dirigida por Ho Chi Minh, que já em 1920 tinha acusado a Terceira República francesa nestes termos: «A chamada justiça indochinesa tem lá dois pesos e duas medidas. Os anamitas não têm as mesmas garantias dos europeus e dos europeizados». Não só são «vergonhosamente oprimidos e explorados», como são também «horrivelmente martirizados» e sofrem «todas as atrocidades cometidas pelos bandidos do capital». Como se vê, nos textos aqui citados de Mao e Ho Chi Minh não existe nem a desvalorização cara a Della Volpe da libertas minor nem a ilusão (comum, com modalidades diferentes, a Bobbio, Della Volpe e Bloch), de que o capitalismo e o liberalismo apesar de tudo garantiriam a «igualdade formal» ou a própria «igualdade política». Como vemos, na denúncia das macroscópicas cláusulas de exclusão da liberdade liberal, o marxismo «oriental» empenha-se, compreensivelmente, bem mais do que o «ocidental».
Tornemos ao debate provocado por Bobbio em 1954. Há uma intervenção sensivelmente diferente da de Della Volpe. A polémica com o filósofo turinês agora desenvolveu-se assim: «Quando e em que medida foram aplicados aos povos coloniais os princípios liberais sobre os quais se disse estar assente o Estado inglês oitocentista, modelo, creio, do regime liberal perfeito para quem raciocina como Bobbio?». A verdade é que a «doutrina liberal […] assenta numa bárbara discriminação entre as criaturas humanas», que alastra não só nas colónias mas também na própria metrópole, como demonstra o caso dos negros estado-unidenses, «em tão grande parte privados de direitos elementares, discriminados e perseguidos». Nesta tomada de posição não há nenhuma degradação a libertas minor da «liberdade formal» mas, ao mesmo tempo, não se perde de vista o facto de que a negar o seu gozo a ilimitadas massas de homens tem sido historicamente o próprio Ocidente liberal. A intervenção que acabamos de ver deve-se a um autor hoje quase totalmente esquecido, mas que responde pelo nome de Palmiro Togliatti, à época secretário-geral do PCI.
2.
Nos anos sessenta e setenta do século XX um equívoco de massa caracteriza na Europa e nos Estados Unidos a esquerda de orientação marxista: as grandes manifestações a favor do Vietname entrelaçam-se tranquilamente com a homenagem tributada a autores inclinados a considerar definitivamente superados os movimentos de libertação nacional. Em 1966, na Dialéctica negativa, Adorno liquida a tese hegeliana do «espírito do povo», ou seja, do carácter essencial da dimensão e da questão nacional, como «reaccionária» e regressiva, por estar afectada de «nacionalismo» e ser «provinciana na época de conflitos mundiais e do potencial de uma organização mundial do mundo». É’ uma tomada de posição que a posteriori tirava legitimidade à guerra conduzida pela Frente de Libertação Nacional da Argélia, um povo e um país indubiamente mais provincianos, mais atrasados e menos cosmopolitas que a França contra quem se tinham insurgido. Seja como for, Adorno colocava-se na impossibilidade de compreender as grandes lutas que mo entanto se iam desenrolando diante dos seus olhos, a começar pela guiada pela Frente de Libertação Nacional do Vietname.
De resto, vejamos como sobre este ponto argumenta o «marxismo oriental». Três anos após a publicação da Dialéctica negativa morre Ho Chi Minh. No seu Testamento, depois de ter chamado os seus concidadãos à «luta patriótica» e ao empenho «pela salvação da pátria», no plano pessoal traça este balanço: «Por toda a vida, de corpo e alma servi a pátria, servi a revolução, servi o povo». Por outro lado, já em 1960, por ocasião do seu septuagésimo aniversário, assim evocou o dirigente vietnamita o seu percurso intelectual e político: «Ao princípio o que me impeliu a crer em Lénine e na Terceira Internacional foi o patriotismo, e não o comunismo». O que provocou grande emoção foram em primeiro lugar os apelos e os documentos que apoiavam e promoviam a luta de libertação dos povos coloniais, sublinhando o seu direito de se constituírem como Estados nacionais independentes: «As teses de Lénine [sobre a questão nacional e colonial] despertaram em mim uma grande comoção, um grande entusiasmo, uma grande fé, e ajudaram-me a ver claramente os problemas. Foi tão grande a minha alegria que até chorei». No que diz respeito a Mao, basta pensar na declaração que fez em 1949, nas vésperas da fundação da República Popular Chinesa: «A nossa nunca mais será uma nação sujeita ao insulto e à humilhação. Pusemo-nos de pé […] A era em que o povo chinês era considerado incivilizado terminou agora».
Bem se compreende o comportamento dos dois grandes revolucionários. Por detrás deles actua a lição de Lénine, que assim caracterizara o imperialismo: trata-se de um sistema em cujo âmbito algumas ditas «nações modelo» atribuem a si mesmas «o privilégio exclusivo da formação do Estado», negando-o aos povos das colónias; sim, «poucas nações eleitas» pretendem edificar o seu «bem-estar» e estabelecer o seu próprio primado na base do saque e da dominação do resto da humanidade. Mas nesses anos a homenagem a Ho Chi Minh ou a Mao ou a Fidel não estimulava de modo nenhum uma distanciação do niilismo nacional absorvido na escola do marxismo ocidental.
A razão profunda desta atitude contraditória será esclarecida de modo exemplar, uns decénios depois, por Hardt e Negri: «Da Índia à Argélia, de Cuba ao Vietname, o Estado é o presente envenenado da libertação nacional». Sim, os palestinos podem contar com a nossa simpatia; mas a partir do momento em que «se institucionalizarem», já não se pode estar do «lado deles». O facto é que «no momento em que a nação começa a formar-se e se torna um Estado soberano perdem-se as suas funções progressistas». Ou seja, só se pode simpatizar com os vietnamitas, com os palestinos ou com outros povos enquanto eles forem oprimidos e humilhados; só se pode apoiar uma luta de libertação nacional na medida em que ela não deixar de ser derrotada!
3.
Neste clima espiritual e político, a cultura de orientação marxista começa a ser atraída e revirada do avesso por autores e correntes de pensamento que contudo deveriam ser vistos com uma certa distância critica. Irrompe em força Foucault com a sua análise da penetração ou da omnipresença do poder não só nas instituições e nas relações sociais mas já no dispositivo conceptual. É um discurso que fascina pelo seu radicalismo e que ainda por cima permite ajustar contas com o poder e a ideocracia como fundamento do «socialismo real», cuja crise se manifesta cada vez com maior nitidez. Na realidade, o radicalismo não só é aparente, como se vira no seu contrário. O gesto de condenação de todas as relações de poder, aliás, de todas as formas de poder quer no âmbito da sociedade que no discurso sobre a sociedade torna bastante problemática ou impossível a «negação determinada», a negação de um «conteúdo determinado» que, hegelianamente, é o pressuposto de uma real transformação da sociedade, o pressuposto da revolução. Para mais, este esforço de identificação e desmistificação do domínio em todas as suas formas revela lacunas surpreendentes justamente onde o domínio se manifesta em toda a sua brutalidade: sìm, bastante escassa ou inexistente é a atenção reservada à dominação colonial.
Pode-se ir mais longe: o colonialismo e a ideologia colonial estão largamente ausentes na história que Foucault reconstrói do mondo moderno e contemporâneo. A julgar por esta, a «aparição do racismo de Estado [deve-se situar] nos inícios do século XX». Quem tratou de pôr em causa esta cronologia foram com larguíssima antecipação os abolicionistas que já no século XIX queimavam na praça pública a Constituição americana, rotulada como um pacto com o diabo pelo facto de consagrar a escravatura racial. Se não na história dos Estados Unidos, Foucault poderia ter-se concentrado na história da Confederação secessionista ou da África do Sul, ou então poderia ter feito uma consideração de carácter geral: se analisarmos os países capitalistas juntamente com as colónias por eles possuídas, podemos facilmente dar-nos conta de que o fenómeno denunciado por Ho Chi Minh em relação à Indochina tem um carácter geral: estamos na presença de uma dupla legislação, uma para a raça dos conquistadores, e a outra para a raça dos conquistados. Neste sentido o Estado racial acompanha como uma sombra a história do colonialismo no seu conjunto; só que este fenómeno se apresenta com maior evidência nos Estados Unidos devido à contiguidade espacial em que vivem as diferentes raças. Aliás, quando em 1976 o autor francês se põe em busca de outra realidade para juntar ao Terceiro Reich sob a bandeira do «racismo de Estado», ele só consegue identificá-la na União Soviética, o país que desde a sua fundação desempenhava um papel decisivo em promover a emancipação dos povos coloniais e que em 1976 ainda estava em primeiro plano na denúncia da politica anti-negra conduzida pela África do Sul!
Tem-se observado que Foucault exerce uma considerável influência sobre Antonio Negri. Com efeito… Nos nossos dias, autorizados especialistas estado-unidenses de orientação liberal descrevem a história do seu país como a história de uma Herrenvolk democracy, isto é, de uma democracia válida só para o Herrenvolk (é significativo o recurso à linguagem cara a Hitler), para o «povo dos senhores» e que, por outro lado, não hesita em escravizar os negros e em eliminar os peles-vermelhas da face da terra. A Empire, em contrapartida, fala em tom compungido de uma «democracia americana» que rompe com a visão «transcendente» do poder, própria da tradição europeia.
Chegados a este ponto, proponho uma espécie de experiência intelectual ou, se quiserem, de jogo. Comparemos dois trechos de dois autores entre si sensivelmente diferentes, mas ambos empenhados em contrapor positivamente os Estados Unidos à Europa. O primeiro celebra «a experiência americana», sublinhando «a diferença entre uma nação concebida na liberdade e devota ao princípio de que todos os homens foram criados iguais e as nações do velho continente, que decerto não foram concebidas na liberdade».
E agora vejamos o segundo:
«O que era a democracia americana senão uma democracia assente no
êxodo, em valores afirmativos e não dialécticos, no pluralismo e na liberdade? Estes mesmos valores – juntamente com a ideia da nuova fronteira – não viriam alimentar constantemente o movimento expansivo do seu fundamento democrático, para além das abstracções da nação, da etnia e da religião? […] Quando Hannah Arendt escrevia que a Revolução americana era superior à francesa dado que a Revolução americana se devia entender como uma busca sem fim da liberdade política, enquanto a Revolução francesa tinha sido uma luta limitada em torno da escassez e da desigualdade, exaltava um ideal de liberdade que os europeus haviam perdido mas que fariam ganhar terreno nos Estados Unidos».
Qual dos dois trechos aqui citados é mais apologético? É difícil dizê-lo, embora o segundo pareça mais inspirado e mais lírico: deve-se à pluma de Negri (e de Hardt), enquanto o primeiro é de Leo Strauss, o autor de referência dos neoconservadores americanos!

Competência do agronegócio é um mito

Comissão Pastoral da Terra
Mato Grosso do Sul,no Brasil de Fato

Uma pesquisa realizada pela doutora Rosemeire Aparecida de Almeida, docente da graduação e pós graduação em geografia da UFMS/Campus de Três Lagoas, revela dados que colocam em xeque a suposta maravilha do agronegócio em Mato Grosso do Sul. A pesquisadora demonstra com clareza, números e porcentagens as flagrantes contradições que o mesmo possui; e questiona a suposta capacidade do agronegócio em relação à produtividade e geração de ocupações no campo. E ainda desnuda sua total ineficiência no uso do expressivo volume de recursos que recebe do Estado em financiamento. O setor, que recheia na mídia propagandas de eficiência, perde em eficácia para a pequena unidade de produção que multiplicou por 20 o que recebeu de financiamento, no período em que foi realizada a pesquisa, já o agronegócio dividiu por dois a “ajuda” recebida. A Comissão Pastoral da Terra, Regional Mato Grosso do Sul, conversou com a profissional. Confira abaixo a entrevista:

A professora é do conceito de que o Agronegócio, sobretudo aqui no Mato Grosso do Sul, é incompetente, segundo uma pesquisa sua. Pode citar os elementos principais em que se baseia para sustentar isso?
Recentemente, coordenei pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/UFMS, com recursos do CNPq e Fundect/MS, pesquisa referente a análise e comparação das transformações territoriais nos Estados de Mato Grosso do Sul e Paraná por meio do estudo dos Censos Agropecuários do IBGE (1995/96 e 2006).
O estudo comparativo destes Estados se justifica pela reconhecida diferença agrária existente em termos de malha fundiária, utilização das terras, mudanças tecnológicas, geração de emprego e renda.
De forma geral, a análise das amostras confirma as hipóteses de que a desconcentração da propriedade é motor de dinamismo no espaço rural e urbano, expresso na maior capacidade de geração de riquezas e pessoal ocupado.
Por exemplo, destacamos que apesar do rebanho bovino do Norte Central paranaense ser cinco vezes menor em relação à região Leste de Mato Grosso do Sul, a quantidade produzida de leite é superior. No entanto, uma simetria permanece, qual seja: nas duas regiões é a pequena unidade que responde pela maior produção de leite. Na região Leste, 42,68% do leite produzido provém dos estabelecimentos de menos de 100 ha e 76,93%, na região Norte Central paranaense.
A respeito dos valores da produção, verificamos que na região Leste do MS as classes de área de menos de 50 hectares foram responsáveis por 5,89% do valor total produzido; já a classe de área com mais de 1000 hectares, por 71,98%.
Porém, ao cruzar estes dados com o valor dos financiamentos obtidos, observamos que a eficiência da pequena unidade é maior. Dito de outra forma, a classe de área de mais de 1000 hectares obteve financiamento de mais de 1 bilhão de reais e gerou um valor de produção total de 524 milhões; a pequena unidade de produção de menos de 50 ha acessou 2,4 milhões (0,21% do valor total dos financiamentos obtidos) e gerou um valor de produção total de 42,9 milhões.
Ou seja, a classe de área de menos de 50 hectares multiplicou por 20 o valor do financiamento e a grande dividiu por dois o valor do financiamento. Portanto, a grande unidade de produção produziu metade do valor que tomou de recursos públicos.
Temos informações importantes também para o Estado na leitura dos dados dos dois últimos censos agropecuários (1995/96 e 2006). A partir da comparação de quatro produtos da lavoura temporária, sendo dois que fazem parte principalmente da agricultura de exportação, e dois que são componentes principais do consumo popular dos brasileiros, em que verificamos que o aumento maior da produtividade ficou por conta do arroz e feijão.
Entretanto, esta produtividade do arroz e do feijão tem passado despercebida, porque a mídia insiste em enaltecer os produtos do agronegócio, principalmente o volume da produção de soja (toneladas/ano), mas não esclarecem que o aumento da produtividade teve um acréscimo de apenas 6,77% de quilos por hectare em 2006, comparado aos dados do Censo de 1995/96. Ou seja, a produtividade média da soja no Estado sai de 2.408 quilos por hectare em 1995/96 para 2.571 quilos por hectare em 2006.
Já o arroz registrou um aumento de produtividade de 67,77% em 2006, comparado com os dados do Censo de 1995/96, e o feijão aumentou a produtividade em 51,19% em relação ao mesmo período. Deve-se a isso a não instalação de uma crise por desabastecimento do produto. Apesar de sofrer uma redução de área colhida em 2006, o volume da produção foi superior ao de 1995/96. Outro dado importante a ressaltar refere-se a classe de área responsável pela produção de feijão, que é a pequena unidade com até 200 há. Este estrato responde por 64,07% do total da produção. Ou seja, apesar de pequena, estes estabelecimentos têm conseguido se apropriar dos avanços tecnológicos e melhorar sua eficiência produtiva.

Perante a situação atual de ofensiva gigantesca do Agronegócio no Mato Grosso do Sul, qual deveria ser o programa político da classe camponesa no Estado na sua luta pela reforma agrária?
Primeiramente, é preciso afirmar a necessidade de respeito à Reforma Agrária em curso neste Estado. É preciso respeitar a batalha cotidiana destes homens e mulheres, mesmo quando ela se parece com uma luta de Davi e Golias. Porque são estas lutas que abrem espaços que servem de referência concreta da existência de um modo de vida, cujo centro não é a terra mercadoria, mas a terra como vida e trabalho.
Todavia, no plano estrutural, é preciso entender que a Reforma Agrária existe na Lei; porém, o Estado brasileiro tem se comportado, na maioria das vezes, como adversário da Reforma Agrária. É possível encontrarmos nas instituições que executam a Reforma Agrária – em todas as esferas de poder – funcionários que não acreditam na potencialidade econômica e social da Reforma Agrária.

Mas, como isso é possível acontecer?
É possível porque no Brasil a luta pela/na terra tem caráter permanente. Isso ocorre porque não se trata de uma questão técnica – como, onde, o quê produzir? A Reforma Agrária é uma questão política, é um embate entre os que têm muita terra e poder e os sem-terra ou com pouca terra. Consequentemente, nossa Reforma Agrária é de longo curso marcada pela descontinuidade.
Logo, a experiência exitosa dos assentamentos – e há muitas – está mais ligada à organização dos movimentos sociais na luta permanente do que a política de Estado. O resultado desta luta é a diferenciação dos assentamentos no Brasil. Isto significa dizer que a viabilidade ou inviabilidade destes depende diretamente do poder de luta dos sujeitos. Aqueles com maior autonomia e qualidade de vida são também os que perceberam que só virá do Estado aquilo que conquistarem. Isso tem incluído bloquear rodovias, ocupar prédios públicos, ocupar propriedades rurais.
Situação que aponta para a fragilidade da Lei de Reforma Agrária como política de Estado. Dito de outra forma, a escolha entre autonomia ou dependência dos assentamentos está ligada à capacidade de luta por saúde, educação, crédito, estradas, etc. Logo, urge a necessidade do debate da Reforma Agrária, no sentido de que ela assuma, de vez, seu papel de distribuição de renda e ressocialização dos sujeitos.
Por exemplo, defendo uma política de assentamentos concentrada, ou seja, é preciso escolher uma microrregião e nela distribuir os assentamentos. Esta ação gerará desdobramentos territoriais no campo e na cidade, a comprovar que a agricultura camponesa é superior ao agronegócio em geração de renda e emprego. Claro, dentro de um modelo próprio do modo de vida destas pequenas unidades. Quero, com isso, marcar distância em relação à Reforma Agrária economicista, que quer transformar os assentados em pequenos empresários, como recentemente aconteceu com o projeto Itamaraty.
Outra questão fundamental, na luta pela Reforma Agrária, é exorcizar a idéia de que toda grande propriedade é sinônima de agronegócio. Este pensamento não procede no Brasil e muito menos no MS. É preciso dizer que apenas uma parte da grande propriedade se modernizou; por isso a luta encarniçada contra a revisão dos índices de produtividade. Os dados do INCRA disponíveis revelam que há muita terra improdutiva e com indícios de grilagem no MS. A Reforma Agrária não pode abandonar este mote em nome da luta contra a falta de limite do agronegócio; na verdade é preciso caminhar nos dois eixos.

Segundo a professora, o agronegócio mudou a paisagem, o território e a cultura no campo e do campesinato. Diante das culturas da soja, cana e eucalipto, quais são as chances de sobrevivência da agricultura familiar no MS?
A complexidade da expansão do agronegócio tem revelado que neste século XXI, a luta transcende a terra. É uma luta por terra e território. Pois, a terra, em disputa, revela sua condição de território como portador de recursos naturais e matérias-primas indispensáveis à expansão do agronegócio. É por isso que muitos pesquisadores já usam o termo agrohidronegócio, quando estudam a expansão desta atividade empresarial no campo.
Para entender os conflitos gerados pela expansão do agrohidronegócio no MS, é necessário considerar que sua principal estratégia tem sido a territorialização. Ocorre territorialização do capital no campo mediante a aliança de classes entre capital industrial, capital financeiro e proprietário fundiário, momento em que eles se tornam um só agente do capital, formando um “complexo territorial”. Situação que tem sido comum no setor sucroalcooleiro e de celulose e papel, embora não limitado a eles. Este processo de territorialização do agronegócio é muito perverso, porque é concentrador de terra e capital. Dele resulta um território em disputa, uma vez que a territorialização deste complexo é sempre expropriação do trabalho familiar camponês. Entender a estruturação deste processo, em especial o papel do Estado via instituições de pesquisa, assistência e financiamento, se torna premissa para desvendar as tramas do agronegócio no sentido de compreender suas manifestações futuras e as possibilidades de resistência. Digo que o MS tem se caracterizado como área preferencial de investimento deste “Complexo Territorial”, porque o Estado (nas três esferas) tem ordenado o território por meio de incentivos, isenções, flexibilização ambiental. Este ordenamento territorial permite uma acumulação de capital acelerada, exemplo é a eucaliptização da região Leste. Em três anos, a Fibria (antiga VCP) dobrou a área plantada e montou um complexo celulose-papel, que faz com que, do total produzido pela empresa, Três Lagoas já responda por ¼ da produção de celulose de mercado (1,3 milhão Ton/Ano).
Porém, se por um lado é preciso indicar a existência concreta de expansão do capital industrial no campo, por outro é fundamental pensar a escala de alternativas.
Digo isso porque não concordo com aqueles que acreditam que terminaremos em um mar de “cana”, “eucalipto”, que não existe possibilidade de outras formas sociais no campo. Acredito que este processo de expansão do agronegócio no campo caminha, contraditoriamente, com outras formas sociais, em especial a agricultura familiar camponesa.
Isso ocorre em virtude do desenvolvimento do capital se alimentar da multiplicidade das formas sociais; segundo, porque a ausência do camponês no território não significa ausência do conflito. Evidência disso é que o movimento hegemônico de luta pela terra no Brasil, representado pelo MST, é formado por sem-terra, ou seja, a resistência se deu no período ápice da Revolução Verde, quando o trabalhador familiar foi varrido do campo.
Uma informação importante da realidade, que corrobora no sentido de evidenciar a resistência, são os dados do Censo agropecuário de 2006 do MS. Eles registram um aumento significativo quanto ao número de estabelecimentos nas classes de área de até menos 10 hectares (46,09%) e de até menos 50 hectares (84,60%), enquanto que para as demais classificações de área, ocorreu uma pequena redução comparada com os dados coletados pelo Censo de 1995/96.
No entanto, este fato ainda não representa em si uma desconcentração fundiária no MS, apesar do crescimento dos pequenos extratos de área, porque a área ocupada por eles é muito pequena. Ou seja, as classes de área de menos 10 e de menos 50 hectares que em 1995/96, juntas, detinham 1,21% da área total, passam a ocupar 2,09% da área total no Estado, em 2006. Por sua vez, os estabelecimentos de acima de 1000 hectares que em 1995/96 açambarcavam 78,44% do território sul-mato-grossense, reduzem seu domínio territorial em 1,51% segundo dados do censo de 2006. Ou seja, detém agora 76,93% da área total do Estado.
Por outro lado, mesmo sem desconcentrar o aumento destes pequenos estabelecimentos, impactou a estrutura. Neste sentido, o número de estabelecimentos passou de 49.423 no Censo 1995/6 para 64.862 no Censo 2006.
Destacamos que mesmo que o aumento do número de estabelecimentos com menos de 50 ha não tenha sido suficiente para gerar desconcentração fundiária, há um saldo positivo no fato de que novas famílias estão vivendo e trabalhando no campo, conseqüência em grande parte da luta dos movimentos sociais pela Reforma Agrária.
Obviamente que é preciso discutir as condições desta sobrevivência da agricultura familiar no MS. Logo, é preciso romper o circuito de miserabilidade que os donos da terra e do capital tem imposto. Neste sentido abrem-se algumas frentes de luta na busca por terra como justiça social e dignidade, como: Revisão dos Índices de Produtividade; Aplicação Efetiva da Municipalização do ITR; Campanha pelo limite de Propriedade e do Plantio da Cana e Eucalipto; Campanha Nacional em Defesa da Agricultura Familiar Camponesa como política pública.

Segundo seu critério, quais deveriam ser os alicerces de uma campanha de defesa da Agricultura Familiar Camponesa?
Em relação à Campanha Nacional em Defesa da Agricultura Familiar, é certamente a ação mais importante pós-eleição de Dilma, inclusive para pagar a dívida com os camponeses que o governo Lula deixou. Penso que o conteúdo central desta Campanha é aquilo que a Cartilha da Agricultura Familiar, organizada pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário/MDA, mostrou: a potencialidade de produção e geração de renda que possuem os estabelecimentos até quatro módulos fiscais. Porém, isso ainda não é suficiente. É preciso uma Campanha que estimule a transição da agricultura convencional para a agro ecológica e, neste caso, mais uma vez os camponeses são o público ideal. O que eu estou pensando?
Defendo uma Campanha pelo subsídio estatal para produção de alimentos de consumo popular até quatro módulos fiscais (pequena propriedade), como os países centrais fazem há muito tempo. E este estímulo do subsídio deve estar atrelado à construção de um novo modelo de agricultura no Brasil, a agroecológica, que é generosa com os alimentos e com a natureza. Desta forma, a Campanha terá aceitação da população, até porque a transição requer amplo investimento a curto e médio prazos. E aqueles que quiserem continuar no modelo convencional, continuariam, mas sem esta vantagem creditícia. Portanto, temos que pensar a realidade, seus desdobramentos e as alternativas.
No caso particular do MS, não adianta desconsiderar a territorialização do agronegócio ou considerá-la um fim em si mesmo. Insisto que é preciso considerar este fenômeno para partimos em busca de diálogo no sentido de pensar quem está sendo impactado no tempo e no espaço. Monitorarmos, por exemplo, a área plantada com monocultura por município, os impactos sobre a fauna, flora e os recursos hídricos, bem como os conflitos gerados.
Discordo daqueles que defendem a eucaliptização da região Leste do MS tendo como pressuposto o fato de que o que se tinha antes eram desemprego e terra degradada pela pecuária. A mesma lógica explicativa aplicada também para o caso da expansão da cana. Ora, é preciso uma escala de alternativas cujo centro de referência não seja o pior. E neste debate, a Universidade tem o dever de contribuir como fórum de discussão de idéias, pois as alterações no ambiente vivido são imensas como conseqüência deste “Complexo Territorial”.