segunda-feira, 8 de novembro de 2010

O Colonialismo Português na Guiné: Os crimes de uma Guerra perdida

Carlos Lopes Pereira


«Desde o tempo das chamadas descobertas ou achamentos até ao tempo do comércio de escravos e crimes da escravatura; desde as guerras de conquista colonial até à época de ouro do colonialismo; das primeiras “reformas” ultramarinas até às guerras coloniais de genocídio dos nossos dias, os colonialistas portugueses deram sempre provas de uma mentalidade supersticiosa e dum racismo primitivo em relação ao homem africano, que consideravam e consideram como naturalmente inferior, incapaz de organizar a sua vida e defender os seus interesses, fácil de enganar, sem cultura e sem civilização».

Amílcar Cabral, 1971

Ao longo da guerra de libertação nacional, o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) e o seu líder, Amílcar Cabral, denunciaram repetidas vezes – em declarações públicas, em mensagens, em relatórios, em comunicados de imprensa, em documentos apresentados à Organização das Nações Unidas e à Organização da Unidade Africana – aquilo que consideravam ser crimes cometidos pelos colonialistas portugueses na Guiné. E não se limitaram a denunciar, apresentaram provas: recolheram declarações de vítimas de torturas e ferimentos, mostraram fragmentos de bombas «napalm», promoveram testemunhos de jornalistas, cineastas, escritores, delegações de organizações e países e outros observadores insuspeitos.
Com base na leitura de documentos publicados pelo PAIGC, sobretudo intervenções de Amílcar Cabral, para o caso da Guiné, são inúmeros os exemplos desses crimes atribuídos ao colonialismo português.

«O “apartheid” à portuguesa» 

Em Junho de 1960, numa brochura publicada em Londres, intitulada «The facts about Portugal’s african colonies», com prefácio do jornalista e historiador Basil Davidson, Abel Djassi, pseudónimo de Amílcar Cabral, explicava à opinião pública europeia a situação dos 11 milhões de africanos submetidos à dominação colonial portuguesa. Afirmava que apesar das riquezas naturais existentes em Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, «os africanos têm um nível de vida inferior ao mínimo vital» e «a sua situação é de servos no seu próprio país». Lembrava que depois do tráfico de escravos, a conquista pelas armas e as guerras coloniais «de pacificação», veio a destruição completa das estruturas económicas e sociais da sociedade africana. Seguiu-se a fase de ocupação europeia e o povoamento crescente, a partir de finais do século XIX e, no caso da Guiné, até 1936, quando terminaram as guerras de «pacificação»: as terras e os haveres dos africanos foram pilhados, os portugueses impuseram a «taxa de soberania» e tornaram obrigatória a cultura de certos géneros (na Guiné, através da Companhia União Fabril (CUF), foi imposta a cultura da mancarra); instituíram o trabalho forçado e organizaram a deportação de trabalhadores, os «contratados».

Denunciando a ideologia racista do estatuto indígena 

imposto no início da década de 30 do século XX por Salazar e só formalmente abolido em 1961, por Adriano Moreira, então ministro do Ultramar do regime fascista – Cabral ridicularizava «a ideia de criar uma “sociedade multirracial” nas colónias, baseada legalmente no estatuto indígena», «na realidade o “apartheid” à portuguesa». E comentava: «99,7% da população africana de Angola, Guiné e Moçambique é considerada “não civilizada” pelas leis coloniais portuguesas e 0,3% é considerada assimilada. Para que uma pessoa “não civilizada” obtenha o estatuto de “assimilada”, tem de fazer prova de estabilidade económica e gozar de um nível de vida mais elevado do que a maior parte da população de Portugal. Tem de viver à “europeia”, pagar impostos, cumprir o serviço militar e saber ler e escrever correctamente o português. Se os portugueses tivessem de preencher estas condições, mais de 50% da população não teria direito ao estatuto de “civilizado” ou de “assimilado”»1…

Onda de repressão e terror 

Nesse ano de 1960, já em Conakry, na República da Guiné – onde instalou o secretariado-geral do PAIGC e obteve apoios do Partido Democrático da Guiné (PDG) e do presidente Sékou Touré –, Amílcar Cabral enviou, em panfletos, mensagens aos funcionários públicos e empregados comerciais guineenses e cabo-verdianos, aos militares guineenses e cabo-verdianos (oficiais sargentos e soldados obrigados a servir no exército colonial português), aos jovens da Guiné e Cabo Verde e até aos colonos portugueses nos dois territórios, convidando-os a juntarem-se à luta de libertação nacional, denunciando os colonialistas que «perseguem, prendem, torturam, massacram, reforçam cada vez mais as suas forças armadas e preparam-se cinicamente para continuar a afogar em sangue todas as tentativas de libertação por parte dos nossos povos»2.
A 1 de Dezembro de 1960, o PAIGC dirigiu um memorando ao governo português propondo o «reconhecimento solene e imediato dos direitos dos povos guineense e cabo-verdiano à autodeterminação» (uma solução política, como alternativa à guerra, foi sempre defendida pelo partido até à vitória). Nesse documento, Amílcar Cabral lembrava que «depois do massacre do cais de Pidjiguiti (Bissau, 3 de Agosto de 1959), no qual militares e civis portugueses mataram a tiro dezenas de trabalhadores guineenses em greve, uma onda de repressão e terror, planeada e comandada pela PIDE, veio tornar mais dura a vida e a luta do povo da Guiné». E denunciava que, «a par disso, a administração colonial conseguiu, com o aumento da exportação do arroz [a base da alimentação dos guineenses], criar mais uma arma de opressão – a fome –, que castiga actualmente uma grande parte do povo guineense»3.
A 3 de Agosto de 1961, o PAIGC proclama a passagem da «revolução nacional» na Guiné «da fase da luta política à da insurreição nacional, à acção directa contra as forças colonialistas», embora reiterando ainda, três meses depois, numa nota aberta ao governo de Lisboa, a proposta de aceitação por Portugal do princípio de autodeterminação dos povos da Guiné e Cabo Verde – nota a que Salazar nem se dignou responder.
«Napalm» sobre as tabancas – Num relatório de finais de 1963, de balanço da luta armada, entretanto desencadeada na Guiné em Janeiro desse ano, o PAIGC retoma a denúncia dos crimes dos colonialistas: «Alarmadas perante a intensificação da nossa acção, as forças portuguesas desencadearam em todo o país, mas sobretudo no Sul, a mais violenta repressão militar e policial contra as nossas populações, principalmente contra todos os suspeitos de pertencerem ao nosso Partido. Aprisionaram, torturaram e assassinaram patriotas, massacraram populações sem defesa e incendiaram as tabancas [aldeias]». E mais: «Desesperados perante as vitórias alcançadas pelo nosso povo tanto no interior do país como no plano exterior, os colonialistas portugueses enviaram para a Guiné grandes reforços de material de guerra e de soldados, cujos efectivos são actualmente da ordem dos 18 a 20.000 homens (cerca de 1.000 em 1959, 5.000 em 1961, 10.000 em 1962). Recorreram então intensivamente aos únicos meios ao seu alcance para tentar deter a nossa luta: os bombardeamentos massivos das nossas tabancas e das nossas populações, sobretudo com as bombas “napalm”, e as tentativas de ataques às nossas posições, a partir de unidades navais colocadas nos braços de mar e nos rios das regiões litorais. Mais de uma centena de tabancas foram destruídas (total ou parcialmente) pelos bombardeamentos aéreos que fizeram vítimas inocentes, de que a maioria é constituída por velhos, mulheres e crianças»4.
Mas nem só destas acções se fazia a guerra: «Por outro lado, os colonialistas portugueses, enquanto gastam somas fabulosas para subornar alguns chefes tradicionais e para conservar a colaboração de um número cada vez mais reduzido de mercenários e traidores, procedeu à difusão aérea de panfletos nos quais as ameaças de destruição total das nossas populações e dos nossos bens materiais pelo bombardeamento e pelo fogo se sucedem às frases de adulação (…)»5.

Em 1964 

ano do I Congresso do PAIGC em Cassacá, nas regiões libertadas do Sul, ano da Batalha do Como (até então «a mais dura derrota da história colonial portuguesa e as [suas] mais pesadas baixas em vidas humanas»), ano da criação das Forças Armadas Revolucionárias do Povo –, um relatório sobre o desenvolvimento da luta armada dá conta da «liquidação das manobras do inimigo tendentes a dividir e desmobilizar o nosso povo pela criação de movimentos fantoches»6, uma prática que os colonialistas vão repetir posteriormente.

Afinal, quem eram os terroristas? 

Em 7 de Dezembro de 1966, um relatório da luta do PAIGC apresenta mais novidades. Os colonialistas nomearam um novo governador, o general Schultz, ido de Angola, «o sexto chefe do estado-maior português [na Guiné] depois do desencadear da luta armada»7, e as tropas portuguesas totalizavam já 25.000 homens (tropas de terra, mar e ar, polícia e corpos armados especiais), um aumento de 25 vezes em relação ao número de soldados estacionados no início da década, num território com 36.000 quilómetros quadrados e 800.000 habitantes.
Amílcar Cabral denuncia manobras políticas dos colonialistas «visando desmobilizar os patriotas e enganar a opinião africana e mundial promulgando falsas “reformas” administrativas»8, acusa os colonialistas de criarem «pretensos movimentos autonomistas» e constata a intensificação da «repressão policial que presentemente atinge não só os patriotas mas também pessoas que eram consideradas favoráveis ao regime colonial»8.
Em 1967 – o exército colonial atingia já os «35.000 militares das diversas armas» –, os colonialistas «intensificaram os bombardeamentos e o tiroteio criminosos contra as populações e tabancas das regiões libertadas utilizando bombas de fragmentação, de napalm e fósforo branco» e, por outro lado, «fizeram tentativas desesperadas a fim de aterrorizar as populações e reocupar certas posições estratégicas importantes das regiões libertadas mediante operações combinadas de grande envergadura e “golpes de mão” por tropas hélio-transportadas»9, segundo um relatório do PAIGC de Março de 1968. O mesmo documento sublinha que nos bombardeamentos aéreos, diários e repetidos, visando sobretudo as populações e tabancas das regiões libertadas, «o inimigo utilizou maciçamente bombas de fragmentação, de napalm e, pela primeira vez, bombas de fósforo branco»10, fornecidas por alguns dos seus aliados da OTAN.
A par destes «bombardeamentos selvagens» e de outras operações (como “golpes de mão” contra as regiões libertadas, com tropas hélio-transportadas, algumas vezes apoiadas por desembarques de fuzileiros navais, «com o fim de aterrorizar as populações, queimar as nossas culturas agrícolas e destruir as nossas bases»11), o relatório refere as acções de propaganda das forças coloniais: «uma intensa propaganda falsa, sobretudo na rádio [de Bissau], tendente a desacreditar a direcção e os objectivos do nosso Partido, a criar a confusão entre as populações, a dividir as forças nacionalistas, a desmobilizar os combatentes, a minar a unidade da nossa organização e a provar a imaturidade da África para a independência»12.

A política do sorriso e do sangue 

A partir da mudança de governador da Guiné, em Maio de 1968 – o general Arnaldo Schultz é substituído pelo general António de Spínola, «militar formado na repressão em Portugal e em Angola»13 –, a estratégia colonialista sofre alterações de forma. Um relatório do PAIGC, de Janeiro de 1970, caracteriza esta «política de duas faces, de sorriso e sangue», a política spinolista da «Guiné melhor à sombra da bandeira portuguesa»: por um lado, «por actos de falsas gentilezas e atenções para com as populações das zonas e centros urbanos ainda ocupados, de concessões nos planos social e religioso com a construção activa de escolas, de postos sanitários e de mesquitas, assim como na organização de viagens a Portugal, atribuição de bolsas de estudo, etc.». Por outro lado, «o inimigo envia todas as semanas novos contingentes de tropas para o nosso país, intensifica os bombardeamentos criminosos e os assaltos terroristas contra as populações das regiões libertadas, queima as colheitas, mata o gado e, sempre que pode, massacra civis, nomeadamente velhos, mulheres e crianças»14. O relatório dá um exemplo concreto destes «assaltos terroristas»: «Quando o inimigo, com a sua falsa política tenta desmobilizar o nosso povo por meio de falsas promessas da sua “campanha psicossocial”, bem como por meio do espantalho neocolonialista de uma “Guiné melhor”, os seus agentes armados tentam, através dos poucos meios aos quais podem ainda recorrer (principalmente através dos bombardeamentos aéreos), prejudicar o mais possível as nossas populações e os nossos combatentes. Chegaram a queimar uma parte das nossas colheitas em Como, Corubal, Quínara e Tombali, com o fim de reduzir as populações à fome e, deste modo, impedir a nossa luta. Aquando de algumas incursões e acções combinadas, chegaram ao ponto de não apenas raptar ou matar vários elementos da população, mas também de roubar arroz, gado e fruta para alimentação das suas tropas, cercadas nos acampamentos»15.
O oitavo ano da luta armada de libertação nacional, 1970, foi «muito rico em acontecimentos de uma grande importância» para o PAIGC, assinala o relatório do partido de Janeiro de 1971. «O sinistro general Spínola (antigo comandante da Guarda Nacional Republicana, o principal instrumento da repressão armada fascista em Portugal; antigo comandante de cavalaria motorizada em Angola), que substituiu o general Arnaldo Schultz, transferido após quatro anos de vãs tentativas criminosas para parar a marcha da nossa luta, chegara à nossa terra com a pretensão de pôr fim à nossa luta durante o ano de 1969», regista o documento. E sublinha: «Tendo sido forçado a constatar o tremendo fracasso dos seus planos de guerra a todo o custo e seguindo possivelmente directrizes do novo chefe do Governo português, Marcello Caetano, o novo governador militar inaugurou a política do sorriso e do sangue, de concessões e crimes abomináveis, de manobras de toda a espécie visando alimentar a guerra pela guerra e desmobilizar a população e os combatentes, para destruir as bases principais do nosso movimento». Mas esta política não deu os resultados esperados por Spínola – apesar dos «actos criminosos dos colonialistas, que reforçaram os bombardeamentos com “napalm” e os assaltos terroristas contra as populações», referindo o PAIGC que, por outro lado, «a liquidação de três comandantes do estado-maior e a morte por crise cardíaca do comandante militar (…) privaram o governador dos seus principais colaboradores, os quais eram os cabecilhas da guerra psico-social»16.

«Nós não estamos à venda» 

A liquidação pelo PAIGC de três majores do exército colonial é amplamente explicada no relatório datado de Janeiro de 1971 e redigido por Amílcar Cabral, num ponto sobre «as manobras políticas dos colonialistas portugueses: a guerra psico-social». Escreve o líder guineense-caboverdeano: «Depois de terem sido forçados a reconhecer, pela voz dos seus chefes principais, que não podem fazer parar a nossa luta nem ganhar a sua suja guerra colonial contra o nosso povo e a África, os criminosos colonialistas portugueses adoptaram novas tácticas para tentar destruir o nosso Partido. Começaram a empregar os métodos mais desprezíveis, os mais vis, no âmbito de uma política que deixa ver claramente, cada dia mais, que os colonialistas portugueses são verdadeiros “gangsters” ou bandidos sem o menor escrúpulo, capazes de cometer os crimes mais bárbaros e de utilizar as mentiras mais desavergonhadas. Tendo fracassado na tentativa de criar a confusão na nossa luta, vendendo, pelo preço da traição, a liberdade condicionada a um certo número de compatriotas presos, os colonialistas portugueses recorreram a outros meios. Inventaram mentiras a respeito de divisões no seio do Partido; escreveram cartas a alguns dirigentes, prometendo-lhes dinheiro em quantidade, boa vida e honras; tentaram explorar o oportunismo, a ambição e os baixos sentimentos, convencidos de que os militantes e dirigentes do nosso Partido são como os que os servem. Mas enganaram-se. As suas tentativas não tiveram por resposta mais do que o desprezo e a repulsa por parte dos nossos camaradas. (…) Então, na frente de Canchungo (centro-Oeste do país), os colonialistas portugueses puseram em acção alguns dos seus principais quadros militares especialistas da guerra psicológica, para tentarem comprar alguns responsáveis dessa frente. Depois de terem estabelecido alguns contactos, escrito cartas ridículas, dado presentes e feito promessas de toda a espécie, os colonialistas sofreram uma derrota vergonhosa: os nossos combatentes liquidaram os comandantes e outros oficiais e soldados que pensavam poder comprar-nos. Este facto prova uma vez mais que sabemos bem o que queremos e somos patriotas. Nós não estamos à venda»17.
O relatório denuncia também outra táctica a que os colonialistas recorreram para tentarem parar a luta de libertação: «dividir o nosso povo e levar os africanos a lutarem contra os africanos», uma táctica «velha e muito usada não só pelos colonialistas mas também pelas guerras coloniais imperialistas»18. São apontados dois exemplos: os «congressos de etnias» para «atiçar de novo os sentimentos tribais que já extinguimos» e a campanha racista contra os cabo-verdianos, desenvolvida através Rádio de Bissau.
Nesse balanço de 1970 sobre a luta na Guiné, é destacada ainda a audiência que o Papa Paulo VI concedeu em Roma a Amílcar Cabral, Agostinho Neto e Marcelino dos Santos, dirigentes do PAIGC, do MPLA e da Frelimo, e é referida a morte de quatro deputados portugueses «que tinham vindo “visitar” o que resta ainda da colónia que era o nosso país» e cujo helicóptero foi abatido pelos combatentes da liberdade.

Assassinar Amílcar Cabral e Sékou Touré 

O relatório do PAIGC de Janeiro de 1971 dá grande relevo à «agressão imperialo-portuguesa» contra a República da Guiné, que Amílcar Cabral classifica como «uma vitória para o nosso povo e o nosso Partido e uma das mais vergonhosas se não a mais vergonhosa derrota do colonialismo português ao longo da sua história». Isto, reconhecendo que «apesar de estarmos habituados aos actos de desespero e banditismo, aos crimes mais abomináveis da parte dos colonialistas portugueses, não deixou de ser para nós uma certa surpresa a agressão caracterizada que eles planearam, organizaram e executaram contra a capital da República da Guiné» [Conakry]. E mais: «É certo que os colonialistas portugueses já tinham feito muitas provocações e agressões contra os povos irmãos das repúblicas da Guiné e do Senegal. Cometeram inúmeros crimes contra as populações pacíficas das fronteiras desses países, bombardearam e incendiaram aldeias, roubaram e pilharam, a coberto da mentira de que temos bases nos territórios vizinhos (…). Mas não resta dúvida de ultrapassaram tudo isso ao perpetrarem a agressão de 22 de Novembro [de 1970] contra Conakry, para a qual tiveram de utilizar os seus próprios barcos e aviões, os seus oficiais e soldados, embora pintados de preto e diluídos em algumas dezenas de mercenários africanos do exército colonial e de renegados e criminosos originários da República da Guiné. Mostraram, sim, mais claramente do que nunca, até onde vai o desprezo pelas leis e pela moral internacionais do nosso tempo. Revelaram de maneira categórica, à África e ao mundo, a natureza tresloucada e criminosa do colonialismo português»19.
Amílcar Cabral revelou todos os pormenores da agressão militar (cuja responsabilidade o governo fascista português negou veementemente…):
– A operação «Mar Verde» foi previamente autorizada por Marcello Caetano e «seguramente, teve o consentimento dos aliados do Portugal colonialista»;
– O general Spínola e o seu estado-maior, em especial o comodoro Luciano Bastos, comandante da Marinha, elaboraram em pormenor os planos da operação;
– «Estes planos foram submetidos pelo próprio governador militar à aprovação do chefe do governo colonial português, a quem foi dada garantia do sucesso da empresa;
– Marcello Caetano recebeu, duas semanas antes da operação, o comodoro Luciano Bastos e o capitão Alpoim Galvão, «que foi designado para comandar a agressão contra Conakry»;
– Foram empregados na acção cerca de 350 homens, entre fuzileiros especiais, tropas de elite, «comandos africanos» e algumas dezenas de originários da República da Guiné;
– As forças de agressão partiram da ilha de Soga, nos Bijagós, «onde tinham sido treinados, durante vários meses, os renegados da República da Guiné» e onde antes da partida receberam a visita de Spínola. Foram transportadas em seis unidades navais da Marinha portuguesa. Estavam prontos para intervir, se a operação tivesse tido êxito, caças-bombardeiros do tipo Fiat G-91, aviões de transporte de pára-quedistas e helicópteros Alouett III.
Os objectivos principais do desembarque em Conakry eram os seguintes: assassinar o presidente Sékou Touré e outros dirigentes do PDG e derrubar o regime guineense, colocando no poder «os renegados da República da Guiné, alguns dos quais estavam aguardando nos barcos, ao largo da capital, e outros nas prisões políticas»; assassinar o líder do PAIGC e, eventualmente, outros dirigentes do partido; destruir todas as instalações do PAIGC; e, subsidiariamente, libertar os prisioneiros de guerra portugueses.

A agressão falhou

– as forças do PAIGC estacionadas em Conakry, sobretudo, e as tropas guineenses leais a Sékou Touré resistiram e rechaçaram os invasores.
Amílcar Cabral escreveu a propósito: «Já estamos habituados às manobras e mentiras dos colonialistas portugueses, particularmente do seu representante actual na nossa terra [Spínola]. Mas devemos confessar que, no caso da agressão contra a República da Guiné, ultrapassaram tudo quanto antes tinham inventado, para mentir descaradamente. Desgraçado povo, o de Portugal, que tem dirigentes capazes de mentir tanto, que são tão cobardes para tentarem, pelos meios mais baixos, negar a sua responsabilidade provada numa acção que planearam minuciosamente, organizaram e executaram. Mesmo em relação aos prisioneiros, único resultado “positivo” da operação, inventaram toda uma história para tentarem fugir à responsabilidade»20.

A cobra nunca deixa de ser cobra… 

Os documentos do PAIGC nos anos seguintes repetem as denúncias dos crimes do colonialismo português. Num relatório de Setembro de 1971, Amílcar Cabral escreveu: «Na Guiné, o inimigo prossegue a sua política de mentiras, de concessões demagógicas, de promessas de promoção dos africanos, até mesmo duma “revolução social” (sic) que se fosse posta em prática não apenas realizaria o programa socioeconómico do nosso Partido mas ainda daria ao nosso povo um nível de vida bastante mais elevado do que o do povo de Portugal. Para completar a farsa, o actual chefe dos colonialistas portugueses – o sinistro general Spínola – promete agora “levar o povo à autodeterminação sob a bandeira portuguesa”. Adepto fervoroso das teorias do general Kaúlza de Arriaga, que considera o negro com um ser não inteligente, o governador militar da Guiné quer viver a fábula do homem do homem astuto que tinha prometido ao rei ser capaz de ensinar um burro a ler. Tal como o homem da fábula, está sem dúvida convencido de que com o passar do tempo ou o burro morrerá, ou morrerá o rei, ou ele mesmo»21.
O relatório retoma a denúncia de «numerosas agressões contra as populações de Casamance (Senegal) e da zona fronteiriça da República da Guiné», pelas tropas coloniais portuguesas, e a acusação de que «os colonialistas tentam, por todos os meios ao seu alcance, perpetrar os crimes mais bárbaros contra as nossas populações, matar o nosso gado, queimar as nossas colheitas, em resumo, desenvolver e intensificar a sua actividade criminosa e terrorista que é o grande desmentido das suas pretensões de promoção económico-social e política do nosso povo». São referidos, uma vez mais, «intensos e contínuos bombardeamentos aéreos, nomeadamente com “napalm”» e «assaltos com tropas hélio-transportadas com o fim de destruir aldeias, queimar as colheitas e matar o gado»22.
Na sua mensagem de Ano Novo de Janeiro de 1972, Amílcar Cabral referiu-se de novo à política da «Guiné melhor» de Spínola e à natureza racista do colonialismo: «Os esforços tão desesperados quanto vãos que faz o actual chefe dos colonialistas portugueses na Guiné, no sentido de destruir o nosso Partido para liquidar a nossa luta, são a prova mais clara de que os colonialistas portugueses não conhecem nem nunca conhecerão a África, não compreendem nem podem compreender o sentido da História e continuam convencidos da sua capacidade de, como dizem, “enganar o preto”. Essa ignorância, incapacidade e convicção racista caracterizaram sempre a acção dos colonialistas portugueses em África, explicam todos os crimes que praticaram e praticam contra os povos africanos, são a causa subjectiva das actuais guerras coloniais e vão seguramente provocar a perda de Portugal, com graves consequências para o povo português»23.
Ainda nesse ano de 1972, a 19 de Setembro, poucos meses antes de ser assassinado, o líder do PAIGC dirigiu uma mensagem por ocasião do 16.º aniversário do partido, na qual voltou a denunciar o «racismo primitivo e doentio» dos colonialistas portugueses e do seu chefe, que falam da «Guiné melhor» e prometem a «autodeterminação sob a bandeira portuguesa», concessões ilusórias que «só enganam os tolos ou os traidores»24. A cobra, por mais que mude de pele, não deixa de ser cobra, adverte…

O maior crime dos colonialistas 

Num relatório dirigido à OUA e cuja primeira redacção Amílcar Cabral concluiu poucas horas antes do seu assassinato por agentes do colonialismo português, a 20 de Janeiro de 1973, o líder do PAIGC abordou a situação da luta na Guiné e em Cabo Verde. Escreveu: «A acção militar dos colonialistas, que fazem esforços desesperados para levar os africanos a baterem-se contra os africanos, caracteriza-se principalmente por bombardeamentos aéreos intensos e por assaltos terroristas contra as regiões libertadas. O massacre das populações (quando podem fazê-lo), a utilização do “napalm”, a destruição das aldeias, do gado e das colheitas são as acções principais do inimigo, que desenvolve planos para a utilização de produtos tóxicos, herbicidas, desfolhantes, contra os nossos campos de cultura e as nossas florestas25».
Dias antes, na sua mensagem de Ano Novo de Janeiro de 1973, considerado o seu «testamento político», Amílcar Cabral anunciava já a preparação da eleição da Assembleia Nacional Popular visando a proclamação da existência do Estado da Guiné-Bissau, a criação de um executivo para esse Estado e a promulgação da sua primeira Constituição: «Da situação de colónia que dispõe de um movimento de libertação e cujo povo já libertou em 10 anos de luta armada a maior parte do seu território nacional, vamos passar à situação de um país que dispõe do seu Estado e que tem uma parte do seu território nacional ocupado por forças armadas estrageiras26».
De forma quase premonitória, o líder do PAIGC advertia que, apesar de todos os avanços da luta, «não podemos esquecer nem um só momento que estamos em guerra e que o inimigo principal do nosso povo e da África – os colonialistas fascistas portugueses – alimentam ainda, com o sacrifício e a miséria do seu povo e por meio de manobras as mais pérfidas e de actos os mais bárbaros, a criminosa intenção e a vã esperança de destruir o nosso Partido, liquidar a nossa luta e recolonizar o nosso povo». Ainda que, assegurava, «nenhum crime, nenhuma força, nenhuma manobra ou demagogia dos criminosos agressores colonialistas portugueses será capaz de parar a marcha da História, a marcha irreversível do nosso povo africano da Guiné e Cabo Verde para a independência, a paz e o progresso verdadeiro a que tem direito»27.
Na verdade, esse «inimigo bárbaro que não tem o menor escrúpulo nas suas acções criminosas» – o colonialismo português – assassinou Amílcar Cabral nos primeiros dias de 1973, utilizando traidores africanos, a soldo da PIDE, infiltrados no PAIGC.
Luís Cabral, irmão de Amílcar, um dos fundadores e principais dirigentes do PAIGC – não se encontrava em Conakry na noite do crime e da prisão de Aristides Pereira e outros dirigentes do partido –, num testemunho oral publicado em 1995, confirmou aspectos principais sobre o assassinato e a continuação da luta até à proclamação da independência da Guiné-Bissau e ao derrubamento do fascismo em Portugal.
Recordou que os colonialistas portugueses fizeram várias tentativas para destruir o PAIGC, até chegar ao ataque a Conakry, em Novembro de 1970, «operação de um comando especial orientado directamente pelo general Spínola para atacar a capital de um país estrangeiro, derrubar o governo e destruir o PAIGC», considerando que, depois do fracasso da agressão, «a tentativa seguinte seria tentar destruir o PAIGC por dentro»28.
De acordo com Luís Cabral, foi o que aconteceu: «Os homens que assassinaram o Amílcar tiveram coragem de o fazer porque tinham o apoio da PIDE. A luta chegou a um ponto em que o grande objectivo em Bissau, das forças especiais, era destruir a unidade Guiné-Cabo Verde. E, então, indivíduos que estiveram ligados ao partido, e até à sua direcção, e estiveram presos uma data de tempo, como Inocêncio Kani, Aristides Barbosa, foram postos em liberdade e depois mobilizados e mandados para Conakry, já ligados à PIDE. O objectivo deles era mobilizar gente contra a direcção do PAIGC, dizendo que o Governo português estava disposto a conversar com os guineenses, que era uma decisão que estava tomada, mas para isso os guinenses tinham que se separar dos cabo-verdianos, porque com Cabo Verde não se podia fazer nada, a NATO não ia aceitar que o PAIGC estivesse em Cabo Verde (…)»29.
Os homens que assassinaram Amílcar Cabral «foram quase todos fuzilados». Esses homens «foram mandados pela PIDE, eles disseram isso»30, confirmou Luís Cabral, referindo também cumplicidades de certos dirigentes da República da Guiné com os criminosos.
Depois do assassinato de Amílcar Cabral – os colonialistas chegaram então a proclamar o fim da guerra na Guiné –, o PAIGC intensificou a luta armada em todas as frentes, equipou-se com novas armas (mandou formar pilotos de «Mig» na União Soviética e recebeu mísseis Strela, de fabrico soviético, entregues pela URSS ainda em Janeiro de 1973, que puseram fim à impunidade aérea dos colonialistas), realizou o seu II Congresso nas regiões libertadas do Leste, elegeu por unanimidade Aristides Pereira como secretário-geral, e, a 24 de Setembro de 1973, reuniu no Boé a primeira Assembleia Nacional Popular da história do país e proclamou o Estado da Guiné-Bissau, reconhecido de imediato por cerca de 80 países. Em 25 de Abril de 1974 o Movimento das Forças Armadas derrubou o regime fascista em Portugal, entre Maio e Agosto realizaram-se conversações em Londres e Argel entre delegações do PAIGC e do novo Governo de Lisboa e a 10 de Setembro a independência de jure da Guiné-Bissau foi reconhecida por Portugal.
Não é necessário esperar que um dia o WikiLeaks divulgue documentos secretos da guerra que Portugal travou em Angola, Guiné e Moçambique entre 1961 e 1974 para se conhecer melhor as barbaridades do colonialismo português.
Para o caso da Guiné-Bissau, basta recorrer a textos da autoria de Amílcar Cabral (haverá imensos outros documentos interessantes espalhados pelos arquivos e fundações portuguesas…), muitos deles publicados, para se conhecer a impressionante lista de crimes que o PAIGC atribuiu, durante 11 anos da sua luta armada de libertação nacional (1963-1974), ao colonialismo português – discriminação racial, fomento do racismo e do tribalismo, prisões e torturas, massacres, bombardeamentos massivos de populações civis (com bombas de fragmentação, «napalm» e fósforo branco), utilização de desfolhantes e herbicidas, destruição de colheitas, roubo de gado e, claro, agressão militar a um país soberano e assassinato de dirigentes políticos.
E foram crimes em vão. Portugal foi derrotado militarmente na Guiné. Os guerrilheiros do «mato» acabaram por vencer os generais formados nas academias ocidentais, mais as suas numerosas tropas bem equipadas com aviões, tanques e canhões fornecidos pelos aliados da NATO.
Apesar dos indescritíveis sacrifícios da guerra, guineenses e cabo-verdianos que lutaram nas fileiras do PAIGC podem hoje orgulhar-se não só da conquista da independência nacional das suas pátrias mas também de terem contribuído decisivamente, com a sua luta, para a liquidação do colonial-fascismo de Salazar/Caetano e a libertação do povo português.

Combatendo os bárbaros


Tzvetan Todorov é um humanista à moda antiga, interessado no amplo espectro do conhecimento humano entendido como um caminho para a integridade e o saber. Linguista, filósofo, historiador, crítico literário, interessado tanto na semiótica como nas fraturas do século XX, este homem nascido na Bulgária e emigrado a Paris aos 24 anos, autor de livros fundamentais em praticamente todos os terrenos pelos quais incursionou, é um impenitente devoto da clareza do pensamento como arma contra a intolerância, a incompreensão e o totalitarismo em todas as suas formas. De passagem por Buenos Aires, convidado pela Fundação Osde para fazer algumas palestras, Todorov concedeu entrevista a Martín Granovsky, do Página/12. Na conversa, entre outras coisas, aponta as raízes fundamentalistas do ultraliberalismo e do populismo conservador que vem crescendo na Europa e nos EUA.

Ele é alto, grisalho, tem olhos curiosos e um aperto de mão forte. Seu francês é perfeito. Tzvetan Todorov nasceu na Bulgária em 1939, mas vive em Paris desde 1963. Foi para a França para ficar um ano e por lá ficou. Estudou com Roland Barthes. Escreveu, entre outros livros, Teoria dos Gêneros Literários, Os Aventureiros do Absoluto, A Conquista da América e A Experiência Totalitária. Veio fazer conferências na Argentina e aceitou conversar com Radar (suplemento do jornal Página/12). A entrevista ocorreu na manhã de quarta-feira, quando já se sabia que os extremistas do Tea Party tinham sido o coração da vitória republicana nos Estados Unidos.

Você escreveu que o ultraliberalismo é uma forma fundamentalista

Sim, eu defendo isso.

Eu perguntava sobre a força do movimento Tea Party nos Estados Unidos.

Bom, na Europa conhecemos o que é o populismo.

Na América Latina também, mas suspeito que o termo é usado para nomear coisas distintas. Aqui a palavra é utilizada para sintetizar – ou criticar, dependendo do caso – experiências de centroesquerda com partidos fracos e líderes fortes.

Eu sei. Por isso me refiro ao caso europeu, que é diferente. Na Europa, é cada vez mais decisivo o voto populista de extrema direita. Um voto que cresce porque tem êxito em focalizar o inimigo de cada povo no estrangeiro diferente.

Agora o grande tema na França é a expulsão dos ciganos para a Romênia. Você se refere a isso?

É um tema grave, mas não é o ponto central na estigmatização. Em geral, a focalização sobre o estrangeiro que mencionava se refere ao diferente que, com frequência aliás, professa a fé islâmica. E isso influi em todos os governos.

Mas a extrema direita populista a que você se refere não chegou ao governo.

Sim, mas a direita de sempre, a direita a que estamos habituados e conhecemos bem, não pode governar se não se apóia na extrema direita. O poder necessita desse apoio.

Na Suécia, os conservadores ganharam mas, pela primeira vez, a extrema direita teve 10% dos votos e ganhou representação parlamentar.

Na Dinamarca e na Holanda a situação é ainda pior. Nesses dois países a questão do apoio da extrema direita à direita tradicional não é somente social, o que por si já é um problema grave, mas também de conformação de maiorias parlamentares. Os conservadores da Dinamarca e da Holanda precisam do voto da extrema direita no Parlamento. Por isso, os governos de direita aceitam muitas posições da extrema direita.

E na Itália?

Ocorre algo parecido com a Liga do Norte, que também tem uma posição ativa contra o estrangeiro diferente e pior ainda se ele tiver alguma relação com o Islã. A Liga do Norte está no governo associada com Silvio Berlusconi.

Por que você assinala uma diferença em relação à situação na França?

Porque tem outros matizes. Nicolas Sarcozy adota frequentemente temas e obsessões da extrema direita. Mas não exclusivamente dela. É um político pragmático preocupado sobretudo em conservar-se no poder. Assim, como coloca hoje a questão dos ciganos, no início de seu mandato adotou inclusive alguns temas da esquerda.

O movimento Tea Party nos Estados Unidos também se inscreve nessas correntes que você identifica na Europa?

Nos Estados Unidos, sobretudo em meio à crise, há um movimento contra os imigrantes. Mas esse não é o tema fundamental do Tea Party. Como a economia vai muito mal, a crítica se dirige ao governo de Barack Obama e tem raízes próprias. Nos Estados Unidos há uma espécie de filosofia de vida ultraindividualista. Essa filosofia diz que o ser humano é responsável pelo destino de sua vida. Mas essa filosofia de vida agrega a idéia segundo a qual o êxito econômico é uma medida suficiente para medir uma vida. Uma posição, evidentemente, fantasiosa.

Por que fantasiosa? Todos seus livros falam das responsabilidades do ser humano e do indivíduo.

Sim, mas não em estado de solidão. Eu estou profundamente convencido de que os seres humanos têm necessidade dos outros. Defender a liberdade ou o direito do indivíduo é um valor positivo. É preciso proteger os indivíduos da violência dos outros indivíduos e do Estado. Mas o indivíduo depende dos demais. A dimensão social do ser humano não pode – não deve – ser eliminada. A economia não pode ser um objetivo último, mas sim um meio.

Você critica a centralidade da noção de êxito econômico na concepção que definiu como “ultraindividualista”. Se o êxito fosse um valor a levar em conta, coisa que já seria discutível, qual seria sua concepção de êxito?

Eu tampouco me guio pelo êxito como objetivo da vida. Mas se, como ser humano, ao final de minha vida me perguntarem o que é o êxito, responderia que é ter vivido uma vida na qual vivi, amei, respeitei e fui amado pelos outros que amei e respeitei. Desculpe se uso tanto a palavra “vida” ou o verbo “viver”, mas prefiro não buscar sinônimos ou outras formas de dizê-lo. O êxito de uma vida inteira, de uma vida completa, é o êxito nas relações humanas. Uma vida sem amor terá sido desastrosa.

Li que você critica também as vidas baseadas somente no intelecto. No idioma argentino falaríamos de uma vida sem por o corpo.

Sim. E o mesmo se aplica a uma vida vivida tendo o êxito econômico como fim último. Ainda que seja redundante dizê-lo, seria uma vida que exclui a vida humana.

O Tea Party o impressiona?

Para além de fenômenos como os da Dinamarca e Holanda, e, de certo modo, da Itália, a tradição europeia é diferente. Na Europa, durante muitos anos todos os governos, de esquerda ou de direita, seguiram um modelo baseado no Estado de bem-estar social, o Welfare State. Esse modelo se fundamenta na solidariedade de toda a população, que se expressa, em última instância, em medidas adotadas a partir do Estado. Falo, por exemplo, da progressividade dos impostos. Quem ganha mais, paga mais. A redistribuição de renda é o princípio constitutivo do Estado. A tradição que aparece com o Tea Party alimenta-se, na origem, da conquista de um espaço vital. É um híbrido que combina a ideologia do xerife e o espaço do pregador.

O que o pregador agrega a essa ideologia?

A certeza de que, se eu sigo buscando meu espaço vital e o êxito, tendo um resultado econômico com fim último, tenho razão porque Deus me disse isso.

Estou predestinado como indivíduo.

Sim. Por isso há um caráter religioso de tipo fundamentalista muito importante. É importante destacar que nessa busca...

A busca parece uma batalha.

E é mesmo. E nessa batalha reaparecem inclusive temas de um passado recente. Obama é acusado até de instaurar o Gulag. Seria, para eles, um comunista.

Mas Obama não é sequer um radical, um homem de esquerda em termos norteamericanos.

Não, claro. É um político do mainstream, também no vocabulário norteamericano. Um político normal que está dentro do sistema político. Mas passa a ser um comunista, na crítica do Tea Party, porque parece querer regular a vida dos indivíduos. Leve em conta que, quando o Tea Party e os legisladores que recebem sua influência criticam a cobertura médica obrigatória votada por iniciativa de Obama este ano, acusam o presidente norteamericano de estar metendo-se em suas vidas. O raciocínio é assim: “Seu eu trabalhei e com meu esforço consegui um bom seguro e uma boa cobertura médica, que me permitirá uma boa aposentadoria privada, por que devo trabalhar para os que não trabalharam e, assim, não alcançaram o meu êxito?”. Falta a solidariedade elementar e isso me parece deplorável.

“Deplorável” é uma palavra forte.

Certamente. Essa forma de pensar procede, antropologicamente, de uma ignorância da necessidade do outro. E o paradoxal é que também tem escassas possibilidades de gerar as condições para o êxito econômico individual da classe média. Vou explicar melhor minha lógica de raciocínio para que não fique parecendo um simples slogan. A sociedade fica desequilibrada. Se fica desequilibrada, perde a força para combater a extensão do problema da droga ou do desemprego. Para solucionar temas dessa magnitude é necessário contar com toda a população. Não é possível fazê-lo apenas com uma parte dela. Como se vê, o Tea Party tem raízes em uma ideologia vigente em setores da sociedade norteamericana desde há muito tempo, mas seus efeitos concretos aparecem hoje. A leitura é que Obama e seu projeto se chocaram com o poder econômico.

E esse poder derrotou-o nestas eleições de metade de mandato.

As conclusões são impactantes. O homem mais poderoso do planeta, que é o presidente dos Estados Unidos, é impotente contra os interesses do grande capital. A mensagem é que as instituições não permitem sequer que um presidente legitimamente eleito adote uma política distinta, ainda que seja levemente distinta, daquela que eles defendem. A recente decisão da Corte Suprema que permite às empresas fazer contribuições à campanha eleitoral representa um freio aos políticos democráticos. Neste ambiente ultraliberal a democracia corre perigo.

Tanto assim?

Efetivamente. O poder se expressa por meio das eleições. Em 2008 se expressou votando em Obama. Mas na prática o povo não pode governar porque isso não é permitido pelos indivíduos mais poderosos. Se isso for verdade e se essa tendência se aprofundar, estaremos assistindo a uma mutação radical. Tão radical como a Revolução Francesa que, em 1879, passou de uma monarquia hereditária para uma assembleia eleita pelos cidadãos. Nós que respeitamos a integridade do indivíduo – e não falo agora, como você advertirá, do ultraindividualismo – devemos nos preocupar quando o domínio de alguns poucos políticos poderosos substitui a vontade dos indivíduos.

Como a substituem?

Usam, entre outras coisas, duas ferramentas. O lobby e o controle dos meios de comunicação. Um exemplo quase caricato ocorre é a Itália, onde Bersluconi pessoalmente é dono da maior cadeia de televisão privada e, como presidente do conselho de ministros, controla os demais sinais. Ao mesmo tempo promove um ultraliberalismo combinando o uso dos meios de comunicação mais poderosos com pressões sobre a Justiça. Por isso é essencial manter o pluralismo na imprensa. É preciso evitar que seja controlada por um pequeno grupo de indivíduos. De oligarcas, como se diz na Rússia. Na França, Sarkozy ocupou-se pessoalmente de que o aporte de capitais de que necessitava o jornal Le Monde não viesse de empresários que não eram simpáticos a ele. Nos Estados Unidos, muitas emissoras de rádio e canais de televisão como a Fox repetem dia e noite uma mensagem populista.

Populista?

Sim. Já sei o que vai me dizer. Sei que a palavra “populista” tem uma acepção diferente na Argentina. Refiro-me, por exemplo, às mensagens do líder da extrema-direita francesa Jean Marie Le Pen. Em que consiste seu populismo? No fato de que encontra fórmulas tão falsas como eficazes de chegar ao povo. Diz: “Na França, há três milhões de desempregados e três milhões de imigrantes. E eu vou lhes dizer como se resolve o problema: colocando pra fora os imigrantes”. Assim age o populismo ultraconservador. Se Obama aumenta impostos para os setores mais poderosos, dirão que que o aumento de impostos afeta a classe média e repetirão isso até a exaustão.

Mas não é só uma questão de propaganda, não? Ou, em todo caso, essa propaganda simplificadora se baseia no medo provocado pelo desemprego e a crise, ou pela falta de políticas mais incisivas, ao estilo de Franklin Delano Roosevelt em 1933.

E, além disso, a população não está bem informada e não costuma entrar em raciocínios teóricos complexos. A experiência cotidiana da França é que aumentam os preços e que, ao mesmo tempo, o chefe de governo fala bem. E um senhor Le Pen diz: “Os ciganos ficaram com o teu dinheiro”. Lembremos que, em 1933, Adolf Hitler foi eleito por sufrágio universal. O populismo, tal como descrevi, apela a um raciocínio simplificado, rápido, compreensível para todos. E digo isso não como anjo. Não vivemos em um mundo habitado por anjos. Tampouco por demônios, é claro. Eu me incluo nisso. Ou seja, gente que está informada e lê os jornais ou até os escreve. E incluo você também, se me permite.

Certamente. Qualquer explicação baseada na lógica anjo-demônio é de fanáticos. Professor, como jornalista e como leitor sempre me chamou atenção uma frase sua: que fazer-se entender, para um intelectual, é um tema ético. Acredito que a disse ironizando Jacques Lacan. Mas, para além de Lacan, por que disse “ético” e não “estético”?

Porque a ética se funda na relação com os demais seres humanos. Implica um respeito. E então não se deve usar meios indignos. A sedução está bem e se justifica quando se busca despertar a simpatia de um indivíduo. É preciso mostrar-se eloquente, simpático, apelar a todos os fogos de artifício de que se disponha. Isso vale para um homem, para uma mulher, para qualquer um. Mas no espaço público considero que praticar a demagogia populista é um tipo de discurso obscuro com aparência de profundidade significa transgredir um contrato.

Que contrato?

O que se estabelece entre interlocutores, entre pessoas. Por isso é um contrato ético.

Tradução: Katarina Peixoto