quinta-feira, 18 de junho de 2009

A crise não passou sua fatura de barbárie







Revisão de expectativas?

Escrito por Venâncio de Oliveira

Nas últimas semanas havia uma reversão de expectativas. O fantasma da crise parecia estar sendo derrotado. Como? As forças do mercado rejubiladas estariam ajustando as suas falhas temporárias e necessárias? Alguns lançam o jargão econômico que se reinventa para poder fazer o de sempre: encantar e nada explicar. Os indicadores deveriam ser analisados com mais cuidado e menos otimismo. É o desespero do poder que não consegue entender a ineficiência dos mecanismos de mercado. Todavia, é difícil aceitar que um amplo setor da "esquerda" brasileira foi cooptado para este projeto de poder.

Antes da saída dos indicadores do último trimestre os analistas e petistas – antes opostos, hoje amigos – mantinham o discurso dos fundamentos sólidos brasileiros para salvar o mundo das mercadorias. A realidade tem dificuldade de se encaixar nesta tentativa de manipulação das expectativas. As variáveis foram analisadas com muita pressa.

Vejamos alguns destes dados. O preço do petróleo voltou a subir, entre a casa dos 60 e 70 dólares (). Os fundos emergentes voltaram a ter "preferência pelo risco" e se moveram para os países emergentes. A exportação chinesa caiu. As relações entre Brasil e China reforçaram-se. A burguesia brasileira começou a pressionar o PSDB a aceitar a entrada da Venezuela no Mercosul. O presidente Chávez vem ao Brasil pedir empréstimos, com um discurso um pouco exagerado, louvando os ímpetos empresariais brasileiros.

Estes dados entrecortados poderiam sugerir outra coisa do que a racionalidade do sistema que se ajusta. Para jogar um pouco de água fria nos otimistas basta ver que se mantêm em alta as notícias de quebras e caos na economia estadunidense. O gigante histórico, General Motors, quebrou e teve de ser ajudado pela mão (hoje) louvável do Estado.

O movimento dos fundos emergentes não deveria ser analisado com louvor. A voracidade de ganhar dinheiro rápido e fácil é mais sinal de decrepitude do modelo econômico do que de progresso. O fato de que este capital parasitário esteja valorizando moedas dos países emergentes é sinal de desespero do capital, estão fugindo do dólar, e das economias dos países hegemônicos. Os chamados emergentes atraíram US$ 21 bilhões de investidores. Já os mercados de países centrais (Japão, Europa e EUA) perderam US$ 14,1 bilhões ().

Isso é um sinal mais negativo que positivo. O déficit dos Estados Unidos promete ser maior com os projetos salvacionistas de Obama. O dólar terá dificuldades crescentes para continuar sendo a moeda de referência. Um processo de mudança de referência não seria indolor; com a quebra do dólar, muitos países e capitais que lhe usam como padrão sofrerão desvalorizações com conseqüências cumulativas para a economia global. A crise do dólar é uma crise das moedas como sistema de referência de valor sustentável, é o capital fictício cobrando seu quinhão.

Brasil e seu papel geopolítico no xadrez da crise

Neste sentido cabe analisar o papel que joga o Brasil na mundialização do capital. É importante relembrar o processo recente de desvalorização do real. O fato de que o real esteja valorizado não significa que seja uma moeda sustentável mundialmente. O capital tem memória de passarinho, ninguém mais se lembra que, antes do craque de outubro de 2008, o mundo especulou com o real - isso causou a débâcle da Aracruz, salva pelo governo Lula.

O real em sua natureza é uma moeda-prostituta. Serve para dar e receber as migalhas dos homens. Quais são os efeitos que estruturam esta natureza? Os juros mais altos do mundo. Dezesseis anos de governos disciplinados às regras do mundo civilizado do dinheiro. Isso cria uma estabilidade aparente para nossa moeda. Coroada com os pontos que os especuladores nos deram ano passado, o Investment Grade. O real é o paraíso.

Nos tempos gloriosos dos nossos intelectuais da "esquerda", dos quais alguns se mantêm na trincheira de resistência, isso já era percebido. O real valoriza, os investidores chegam, ganham dinheiro e saem, desvalorizando nossa moeda. É uma aposta. Alguém ganha, outro perde. Sempre o povo acaba perdendo, porque paga as apostas dos jogadores. A situação do filho que joga todo o dinheiro e a mãe acaba sempre o salvando.

Outro elemento para entender a participação do Brasil na ganga financeira mundial é o seu papel hegemônico regional e as características do processo produtivo interno. Como analisado por Ruy Mauro Marini (), o Brasil tem características de economia sub-imperialista. Esta natureza conquistada pela industrialização dos anos de ouro do capitalismo brasileiro foi rearticulada, não se perdeu, mudou sua forma. Mas mantém o essencial.

A economia brasileira explora nações menores, como Paraguai, Venezuela e outros. Isso cria um efeito amortecedor para a burguesia brasileira que é vassala da economia mundial, tendo de transferir uma parte de seu excedente com pagamentos de juros e rendas ao exterior. Como faz isso? O empresariado brasileiro em aliança com o Estado domina fronteiras agrícolas e recursos naturais de países latino-americanos ou mesmo africanos (), o que permite custos menores, com um excedente maior para a burguesia brasileira.

As exportações brasileiras têm um duplo destino, os países centrais e os periféricos. O Brasil exporta capitais, carros e aviões para a restrita burguesia e classe média de países da extrema periferia da economia mundial. Com a pulverização destes mercados, ou seja, a ampliação do horizonte comercial feita pela diplomacia brasileira, permite-se incrementar a carteira comercial brasileira. Por último, o Brasil exporta suas commodities, carros, aviões e parte dos seus lucros para os países centrais. Assim, o Brasil é fortemente dependente da exportação, bem como da saúde econômica de países periféricos e centrais.

O capital internacional também é dependente da economia brasileira, pois tem lucros a receber dos seus investimentos especulativos e de suas montadoras de carros. É importante agregar neste sentido a participação do capital internacional na Petrobrás, Vale do Rio Doce e Embraer. Dessa forma, é fácil entender a pressão que sofre o tucanato. O mercado venezuelano é estratégico, dada a possibilidade de exportar capitais e mercadorias, e dominar fronteiras petrolíferas. Outro exemplo é a disputa pelo gás boliviano pela Petrobras, ou ainda o domínio da fronteira agrícola paraguaia por brasileiros.

A partir destes elementos é difícil perceber o fim da crise, e mais fácil entender as apostas dos fundos. O Brasil tem potencial econômico e regional, isto cria ilusões nos apostadores internacionais. Porém, de fôlego curto, pois o Brasil é dependente da acumulação de capital dos países centrais. Os programas salvacionistas de Obama podem criar outro ciclo curto de acumulação, mas baseado em elementos frágeis, a dívida externa e interna estadunidense. A bolha pode ser maior e seu estouro pode ter conseqüências mais drásticas para a economia mundial.

Mercado interno e ilusões de capitalismo autóctone

A economia brasileira tem seu mercado interno para amortecer os efeitos da crise. O Brasil tem um desenvolvimento desigual e combinado de seus setores econômicos, ilhas de excelência como a produção de aviões e setores tecnologicamente atrasados. Tal fato permite uma classe média que trabalha no centro destas empresas, uma aristocracia operária, gerentes e tecnocratas, criando uma demanda que poderia incentivar um ciclo interno de acumulação. Este mercado é esquecido até o momento da crise. Quando as empresas têm problemas com a demanda externa, voltam-se para dentro, com incentivos ao consumo interno, o que explicaria a política de corte de impostos para consumo de carros. Trata-se de um efeito de relaxamento da crise, mas não de superação, pois dificilmente o brasileiro vai consumir os aviões e as sojas que são o setor dinâmico da economia nacional.

Dentro da tentativa da superação da crise, cabe analisar algumas políticas colaterais. A economia brasileira é estruturalmente dependente da superexploração do trabalho, necessária para contrabalancear o compromisso de enviar excedentes para o exterior. Uma burguesia ávida por lucros precisa superexplorar sua classe trabalhadora para assim manter seu consumo de classe dominante européia e estadunidense. Desta forma, é impossível fazer um estado de bem-estar social brasileiro.

E todos os intentos que buscaram respeitar a democracia liberal foram julgados pelas mãos de ferro da burguesia. Temos um mercado de trabalho estreito. Quando tivemos o ápice de regulação, a burguesia usava do mercado informal para poder manter o ritmo de acumulação selvagem. Os governos neoliberais desmontaram a precária política social que tivemos. O governo Lula não se atreveu a tocar nestas mudanças.

O crescimento econômico recente não foi captado pelo mercado de trabalho brasileiro. As taxas de desemprego de 5% a 6% seriam insuportáveis para a burguesia brasileira. Que fizeram? Um pequeno choque de desemprego. Exemplo disso: a demissão em massa na Embraer. Se a crise piorar, o desemprego (aberto) pode chegar aos patamares de 13% do início do governo Lula. Em um recente relatório seu, a OIT demonstra que, dentro dos pacotes anti-crise no mundo, o brasileiro é que menos tem proteção social, no qual a ajuda para desempregados é a mais precária (). O salário mínimo de cerca de 200 dólares é uma vergonha. Honduras, que é uma economia bem menor que a brasileira, tem o salário mínimo de 250 dólares. Essa é a política trabalhista progressista do governo Lula? Qualquer política trabalhista que questione a superexploração de fato é uma medida revolucionária.

Assim, a crise é jogada nas costas do trabalhador. O fato de que é possível superar a crise a partir de termos capitalistas não dá perspectiva de que teremos um mundo mais justo, pois é impossível humanizar o capital. O fato de que a extrema-direita ganha cadeiras no parlamento Europeu pode ser indício de que as soluções para superar a crise vão demandar mais barbárie. Talvez, a classe trabalhadora européia perca todos os resquícios do estado de bem-estar social que foi conquistado por uma classe mais combativa.

Novo ciclo de acumulação não superará a crise estrutural

O fator China ainda é uma incógnita. É uma economia maior do que a brasileira, mas alguns elementos são muitos semelhantes: a superexploração de trabalho nacional e a dependência da acumulação de capital internacional. A queda da exportação chinesa é um fator que pode acumular mais conseqüências negativas mundiais. Talvez, coubesse uma análise da classe média interna chinesa, uma população maior que a brasileira, e que poderia ser um efeito amortecedor com mais alcance. Isso responderia à tentativa da burguesia brasileira de buscar outro amo, o estreitamento comercial entre a burguesia brasileira e a burocracia chinesa. Outro ciclo de crescimento não anula as contradições próprias do capitalismo. Um consumismo chinês-brasileiro e um plano de guerra estadunidense de longo alcance podem gerar uma crise de sobreprodução energética sem precedentes, capaz de ameaçar a própria civilização humana.

A crise do dólar ainda não foi sentida em toda a sua extensão. Uma mudança de padrão será bem dolorosa e, neste sentido, estariam equivocados tanto os emergentes que querem uma transição pacífica para outro padrão (obscuro) de referência como os conservacionistas que pensam que as coisas estão boas do jeito que está. Outro problema é que o petróleo volta ao crescimento anterior. Sobre o petróleo, são importantes duas considerações: a baixa anterior significou um estouro de uma bolha, dos apostadores que especulavam com seu crescimento; por outro lado, sua caída não restabeleceu preços estáveis. O crescimento dos preços de petróleo é sustentado e está relacionado com a crise de alimentos, agora só lembrada em alguns documentos da FAO. Este novo ciclo de crescimento de preços pode significar outra bolha para ser estourada, que significaria mais tremores na abalada economia mundial.

Como muito bem analisado pelos marxistas Chesnais () e Reinaldo Carcanholo (), esta crise é filha mal criada da crise de 1970. Neste tempo houve uma reconfiguração do capital e a liberalização financeira, comercial e de trabalho criou outros jogadores. Isso trouxe mais instabilidade à contraditória economia capitalista. A crise não acabou, é impossível sublimar seus conseqüentes problemas humanos.

Os projetos alternativos não se evidenciaram. Não quer dizer que não exista formulação consistente. Mas padecemos da crise de um ciclo na esquerda brasileira e mundial. Enquanto os socialistas não conseguiram superar a hegemonia da caducada fórmula reformista, um projeto consistente de superação do capitalismo não terá seu reflexo na práxis política da classe trabalhadora.

Não é uma questão de substituição simples da direção antiga. Mas de uma construção de novos discursos, relações e linhas da esquerda e da classe trabalhadora organizada. O discurso da velha esquerda mantém uma correspondência ideológica com a realidade fetichista do capital. A idéia de um Brasil desenvolvido promete sonhos de estado de bem-estar social.

A ilusão tem seu tempo determinado. A esquerda socialista que se mantém na luta não conseguiu uma influência que se contraponha ao popular projeto de uma social-democracia tupiniquim. Os projetos alternativos latino-americanos, venezuelanos e bolivianos estão sendo testados. A crise não traz um alento para os socialistas, ela pode passar sua fatura de barbárie.

Notas:

1) http://www.oil-price.net/index.php?lang=pt

2) CANZIAN Fernando. Apetite por risco volta ao mercado global, Folha de S. Paulo, 26/06/2009.

3) MARINI, Rui Mauro. La acumulación capitalista mundial y el subimperialismo, Cuadernos. Políticos, México, n.12, abril-junio 1977. Alegre, UFRGS, 2007. http://www.marini-escritos.unam.mx.

4) Diante disso não é nada fraterna e progressista a política externa brasileira com os países latino-americanos e africanos. O projeto do etanol de criar desertos verdes fora do Brasil é um ataque à soberania alimentar de nações como Haiti, El Salvador e outras que estão dentro do horizonte comercial do governo Lula.

5) Para OIT, ação do Brasil deixa trabalhadores sem proteção, Folha de S. Paulo, 26/03/09.

6) CHESNAIS, François. Recesión mundial: el momento, las interpretaciones y lo que se juega en la crisis, in: http://www.herramienta.com.ar/.

7)CARCANHOLO, Reinaldo. Situación mundial: aspectos teóricas de la crisis capitalista, in: http://www.herramienta.com.ar/.

Venâncio de Oliveira é economista e trabalha no CEICOM (Centro de Investigación sobre Inversión y Comercio) – http://www.ceicom.org/

.

Contato: venancio.comuna@hotmail.com

Artigo do Resistir.info...

A desdolarização:
O desmantelamento do império financeiro-militar da América
– O ponto de viragem de Yekaterinburg

por Michael Hudson

A cidade de Yakaterinburg, a maior da Rússia a leste dos Urais, pode tornar-se conhecida não só como o local da morte dos czares como também da hegemonia americana – não só como o lugar em que o piloto Gari Powers, do U-2, foi abatido em 1960 como também o lugar em que a ordem financeira internacional centrada nos EUA foi deitada abaixo.

O desafio à América será o foco primário das extensas reuniões de Yekaterinburg (antiga Sverdlovsk) nos dia 15 e 16 de Junho entre o presidente chinês Hu Jintao, o presidente russo Dmitry Medvedev e outros responsáveis superiores dos seis países da Organização de Cooperação de Shangai (SCO). A aliança é formada pela Rússia, China, Cazaquistão, Tajiquistão, Quirguistão e Uzbequistão, com estatutos de observadores para o Irão, Índia, Paquistão e Mongólia. A ela somar-se-á na terça-feira o Brasil, para discussões entre os países BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China).

Os participantes asseguraram a diplomatas americanas que o desmantelamento do império financeiro e militar dos EUA não é o seu objectivo. Eles simplesmente querem discutir ajuda mútua – mas de um modo em que não haja papel para os Estados Unido, a NATO ou o dólar americano como veículo de comércio. Os diplomatas estado-unidenses podem bem perguntar-se o que isto realmente significa, se não um movimento para tornar a hegemonia dos EUA obsoleta. Isto é o que quer dizer afinal de contas um mundo multipolar. Para começar, em 2005 a SCO pediu a Washington para estabelecer um calendário para a retirada das suas bases militares na Ásia Central. Dois anos depois os países SCO alinharam-se formalmente com as antigas repúblicas CIS pertencentes à Collective Security Treaty Organization (CSTO), estabelecida em 2002 como contra-peso à NATO.

Mas a reunião provocou apenas um bocejo colectivo dos EUA e mesmo da imprensa europeia, apesar da sua agenda de substituição do padrão dólar global por um novo sistema financeiro e de defesa militar. Um porta-voz do Council on Foreign Relations disse dificilmente poder imaginar que a Rússia e a China pudessem ultrapassar as suas rivalidades geopolíticas, [1] sugerindo que a América poderia utilizar a táctica do divide-e-conquista tão habilmente utilizada pela Grã-Bretanha durante séculos a fim de fragmentar a oposição estrangeira ao seu próprio império. Mas George W. Bush ("Eu sou um unificador, não um divisor") confiou no legado da administração Clinton impulsionando a Rússia, a China e os seus vizinhos a descobrirem um terreno comum quando chegou o momento de encontrar uma alternativa para o dólar e portanto para a capacidade americana de incorrer em défices de balança de pagamentos ad infinitum.

Aquilo que pode vir a demonstrar-se como ritos finais da hegemonia americana começou em Abril na conferência do G-20 e tornou-se ainda mais explícito no Fórum Económico Internacional de S. Petesburgo, quando o sr. Medvedev apelou à China, Rússia e Índia para "construírem uma ordem mundial cada vez mais multipolar". O que isto significa é bom inglês é: Nós atingimos o nosso limite na subsidiação do cerco militar da Eurásia pelos Estados Unidos enquanto permitimos também que os EUA se apropriem das nossas exportações, companhias, acções e imobiliário em troca de papel-dinheiro de valor discutível.

"O sistema unipolar mantido artificialmente", esclareceu o sr. Medvedev, está baseado sobre "um grande centro de consumo, financiado por um défice crescente, e portanto dívidas crescentes, uma divisa de reserva anteriormente forte e um sistema dominante de avaliação de activos e riscos". [2] A raiz da crise financeira global, concluiu, é que os Estados Unidos fabricam muito pouco e gastam demasiado. Especialmente inquietantes são os seus gastos militares, tais como a escalada militar da ajuda americana à Geórgia anunciada na semana passada, o escudo de mísseis da NATO na Europa do Leste e o crescimento americano nos países ricos em petróleo do Médio Oriente e Ásia Central.

O ponto de impasse com todos estes países é a capacidade de os EUA imprimirem ilimitadas quantias de dólares. Os super-gastos dos consumidores americanos com importações em excesso das exportações, as compras americanas de companhias e imobiliário estrangeiro, e os dólares que o Pentágono gasta no exterior acabam todos em bancos centrais estrangeiros. Estas agências enfrentam então uma escolha difícil: ou reciclar este dólares de volta para os Estados Unidos através da compra de títulos do Tesouro dos EUA, ou deixar a força do "mercado livre" aumentar o valor relativo da sua divisa para com o dólar – com isso apreçando as suas exportações de modo a colocá-las fora dos mercados mundiais e portanto criando desemprego interno e insolvências de negócios.

Quando a China e outros países reciclam as suas entradas de dólares ao comprarem títulos do Tesouro dos EUA para "investir" nos Estados Unidos, esta acumulação não é realmente voluntária. Ela não reflecte a fé na economia dos EUA, no enriquecimento de bancos centrais estrangeiros através das suas poupanças, ou qualquer preferência de investimento calculado, mas simplesmente uma falta de alternativas. "Mercados livres" em US-style engancham países num sistema que os força a aceitarem dólares sem limites. Agora eles querem sair.

Isto significa criar uma nova alternativa. Ao invés de fazer simplesmente "mudanças cosméticas como alguns países e talvez como as próprias organizações financeiras internacionais desejassem", concluiu o sr. Medvedev no discurso de S. Petesburgo, "o que precisamos são instituições financeiras de um tipo completamente novo, em que questões políticas e motivos, e países particulares, não dominarão".

Quando os gastos militares no estrangeiro forçaram a balança de pagamentos dos EUA ao défice e conduziram os Estados Unidos ao abandono do ouro, em 1971, os bancos centrais ficaram sem o activo tradicional utilizado para regular desequilíbrios de pagamentos. A alternativa, na falta de outra, era investir as suas subsequentes entradas de pagamentos em títulos do Tesouro dos EUA, como se estes ainda fossem "tão bons quanto ouro". Os bancos centrais agora possuem US$4 milhões de milhões (trillion) destes títulos nas suas reservas internacionais – o enterrar destes empréstimos financiou a maior parte dos défices do orçamento interno do Governo dos EUA durante mais de três décadas! Uma vez que cerca da metade dos gastos discricionários do governo dos EUA é com operações militares – incluindo mais de 750 bases militares no estrangeiro e operações cada vez mais dispendiosas nos países produtores de petróleo e nas vias de acesso ao mesmo – o sistema financeiro internacional está organizado de um modo que financia o Pentágono, assim como compras americanas de activos estrangeiros que se espera renderem muito mais do que os títulos do Tesouro possuídos pelos bancos centrais estrangeiros.

A principal questão política a enfrentar os bancos centrais do mundo é portanto como evitar acrescentar ainda mais dólares às suas reservas e portanto financiar ainda mais o gasto deficitário dos EUA – incluindo a despesa militar junto às suas fronteiras.

Em primeiro lugar, os seis países SCO e os países BRIC pretendem comerciar nas suas próprias divisas de modo a obterem o benefício do crédito mútuo que os Estados Unidos até agora monopolizaram para si próprios. Tendo em vista este objectivo, a China selou acordos bilaterais com a Argentina e o Brasil no sentido de denominar o seu comércio em renminbi ao invés do dólar, da libra esterlina ou dos euros, [3] e duas semanas atrás a China alcançou um acordo com a Malásia no sentido de denominar o comércio entre os dois países em renminbi. [4] O antigo primeiro-ministro, Dr. Mahathir Mohamad, explicou-me em Janeiro que, como país muçulmano, a Malásia quer evitar fazer qualquer coisa que facilite a acção militar estado-unidense contra países islâmicos, incluindo a Palestina. O país já tem demasiados activos em dólares, explicaram os seus colegas. O governador do banco central Zhou Xiaochuan, do Banco do Povo da China, redigiu uma declaração oficial no seu sítio web de que o objectivo agora é criar uma divisa de reserva "que seja desconectada de países individuais". [5] Este é o objectivo das discussões em Yekaterinburg.

Além de evitar financiar tanto a compra da sua própria indústria pelos EUA como o cerco estado-unidense do globo, a China, a Rússia e outros países gostariam sem dúvida de obter a mesma espécie de "almoço gratuito" que a América tem estado a obter. Tal como a questão se lhes apresenta, vêm os Estados Unidos como um país fora da lei, tanto financeiramente como militarmente. Como caracterizar de outra maneira um país que mantém um conjunto de leis para os outros – sobre guerra, reembolso de dívida e tratamento de prisioneiros – mas ignora-as em relação a si próprio? Os Estados Unidos são agora o maior devedor do mundo mas tem evitado o sofrimento dos "ajustamentos estruturais" impostos a outras economias devedoras. As reduções de taxas de juros e fiscais em face dos défices comerciais e orçamentais em explosão são vistas como o cúmulo da hipocrisia considerando os programas de austeridades a que Washington força outros países, através do FMI e outros dos seus veículos.

Os Estados Unidos dizem às economias devedoras para liquidarem as suas empresas públicas e os seus recursos naturais, elevarem as suas taxas de juros e aumentarem impostos enquanto arruínam as suas redes de segurança social a fim de espremer dinheiro para pagar aos credores. E internamente o Congresso proibiu a CNOOK da China de comprar a Unocal com o argumento da segurança nacional, assim como proibiu o Dubai de comprar portos e a outros fundos de riqueza soberana de comprarem infraestruturas chave. Os estrangeiros são convidados a emularem a compra japonesa de troféus tipo elefantes brancos, tal como o Rockefeller Center, no qual os investidores perderam rapidamente mil milhões de dólares e acabaram por se afastar.

Quanto a isto, os EUA não deram realmente à China e a outros países com excedentes de pagamentos grande alternativa excepto descobrir um meio de evitar nova acumulação de dólares. Até à data, as tentativas da China de diversificar os seus haveres em dólares para além dos títulos do Tesouro não tiveram muito êxito. Para começar, Hank Paulson da Goldman Sachs dirigiu o seu banco central para os títulos de rendimento mais alto da Fannie Mae e do Freddie Mac, explicando-lhes que estes eram de facto obrigações públicas. Ambos entraram em colapso em 2008, mas pelo menos o governo dos EUA tomou posse destas duas agências de empréstimos hipotecários, acrescentando formalmente os seus US$5,2 milhões de milhões em obrigações à dívida nacional. De facto, foi em grande parte o investimento oficial estrangeiro que estimulou o salvamento. Impor uma perda a agências oficiais estrangeiras teria rompido de imediato o padrão do título do Tesouro, não só por destruir totalmente a credibilidade dos EUA como também porque há simplesmente muito poucos títulos do governo a absorverem a inundação de dólares na economia mundial devida à elevação dos défices da balança de pagamentos estado-unidense.

Procurando uma posição de equilíbrio para proteger o valor dos seus haveres em dólares quando a bolha do crédito do Federal Reserve levou ao rebaixamento das taxas de juro, os fundos de riqueza soberana da China procuraram diversificar a partir do fim de 2007. A China comprou participações no bem conectado fundo de acções Blackstone e no Morgan Stanley na Wall Street, no Standard Bank do Barclays na África do Sul (antes filiado ao Chase Manhattan no tempo do apartheid na década de 1960) e no conglomerado financeiro belga Fortis, que entrou logo em colapso. Mas o sector financeiro dos EUA estava a entrar em colapso sob o peso da sua dívida piramidal e os preços das acções de bancos e firmas de investimento mergulharam no mundo todo.

Os estrangeiros vêem o FMI, o Banco Mundial e a Organização Internacional de Comércio como emanações de Washington num sistema financeiro suportado por bases militares e porta-aviões americanos que envolve todo o globo. Mas esta dominação militar é um vestígio de um império americano que já não é mais capaz de dominar pela força económica. O poder militar estado-unidense é músculo em excesso, baseado mais no armamento atómico e ataques aéreos a longa distância do que sobre operações no terreno, as quais politicamente tornaram-se demasiado impopulares para serem montadas em grande escala.

Na frente económica não há meio previsível pelo qual os Estados Unidos possam descarregar os US$4 milhões de milhões que devem a governos estrangeiros, os seus bancos centrais e aos fundos de riqueza soberana estabelecidos para dar destino à inundação global de dólares. A América tornou-se uma caloteira – e na verdade, um caloteiro militarmente agressivo pois procura manter-se como a potência única que chegou a ser através de meios económicos. O problema é como restringir o seu comportamento. Yu Yongding, um antigo conselheiro do banco central chinês agora na Academia de Ciências de China, sugeriu que o secretário do Tesouro Tim Geithner fosse avisado de que os Estados Unidos deveriam "salvar-se" antes e acima de tudo pela redução do seu orçamento militar. "O imposto sobre o rendimento dos EUA provavelmente não aumentará no curto prazo devido ao baixo crescimento económico, a despesas inflexíveis e ao custo de 'combater duas guerras' ". [6]

Actualmente são as poupanças estrangeiras, não as dos americanos, que estão a financiar o défice orçamental dos EUA através da compra da maior parte dos títulos do Tesouro. O efeito é tributação sem representação para os eleitores estrangeiros pois não podem dizer ao governo dos EUA como utilizar as suas poupanças forçadas. Portanto é necessário aos diplomatas financeiros que ampliem o âmbito das suas decisões políticas para além do sector do mercado privado. As taxas de câmbio são determinadas por muito factores além de "cartões de crédito detidos pelos consumidores", o eufemismo habitual que os media dos EUA mencionam para o défice da balança de pagamentos. Desde o século XIII, a guerra tem sido um factor dominante na balança de pagamentos dos principais países – e das suas dívidas nacionais. O financiamento de governos através de títulos faz-se sobretudo para dívidas de guerra, pois em tempos de paz normais os orçamentos tendem a ser equilibrados. Isto liga o orçamento de guerra directamente à balança de pagamentos e às taxas de câmbio.

Os países estrangeiros vêem-se presos a títulos de dívida impagáveis – sob condições em que, se se movimentassem para travar o almoço gratuito dos EUA, o dólar mergulharia e os seus haveres em dólares cairiam de valor em relação às suas próprias divisas internas e outras divisas. Se a divisa da China se elevasse em 10% contra o dólar, o seu banco central mostrará o equivalente a uma perda de US$200 milhões nos seus haveres de US$2 milhões de milhões quando denominados em yuan. Isto explica porque, quando agências de classificação de títulos falam acerca da perda da classificação AAA para os títulos do Tesouro dos EUA, elas não querem dizer que o governo não possa simplesmente imprimir os dólares de papel para "tornar bons" estes títulos. Querem dizer que os dólares depreciarão no valor internacional. E isso é exactamente o que está agora a verificar-se. Quando o sr. Geithner fez uma cara séria e disse numa sessão na Universidade de Pequim, no princípio de Junho, que acreditava num "dólar forte" e que os investimentos da China nos EUA portanto era seguros e saudáveis, a reacção foram risadas sarcásticas. [7]

A previsão de uma elevação da taxa de câmbio da China dá um incentivo a especuladores para procurarem tomar emprestado em dólares a fim de comprar renminbi e beneficiarem da valorização. Para a China, o problema é que este influxo especulativo tornar-se-ia uma profecia auto-cumprida ao forçar a alta da sua divisa. Assim o problema das reservas internacionais está inerentemente ligado ao dos controles de capitais. Por que a China deveria ver as suas companhias mais lucrativas vendidas por US dólares criados livremente, os quais o banco central deve utilizar para comprar títulos do Tesouro dos EUA de baixo rendimento ou perder ainda mais dinheiro na Wall Street?

Para evitar este dilema é necessário inverter a filosofia dos mercados de capital abertos que o mundo tem adoptado desde Bretton Woods em 1944. Por ocasião da visita do sr. Geithner à China, "Zhou Xiaochuan, ministro do Banco Popular da China, o banco central do país, disse enfaticamente que esta era a primeira vez desde as conversações semestrais principiadas em 2006 que a China precisava aprender tanto com os erros americanos como com os seus êxitos" no que concerne à desregulamentação de mercados de capital e desmantelamento de controles. [8]

Uma era está portanto a chegar ao fim. Face ao contínuo super gasto dos EUA, a desdolarização ameaça forçar países a retornarem à espécie de taxas de câmbio duais que eram comuns entre a I e a II Guerras Mundiais: uma taxa de câmbio para o comércio de mercadorias e outra para movimentos de capital e investimentos, pelo menos das economias da área do dólar.

Mesmo sem controles de capital, os países que se reúnem em Yekaterinburg estão a dar passos para evitar serem os receptores relutantes de ainda mais dólares. Ao verem que a hegemonia global dos EUA não pode continuar sem os gastos de poder que eles próprios fornecem, os governos estão a tentar acelerar o que Chalmers Johnson denominou de "as aflições do império" no seu livro com o mesmo nome ("The Sorrows of Empire"). Se a China, a Rússia e seus aliados não alinhados prosseguirem o seu caminho, os Estados Unidos já não viverão mais das poupanças dos outros (na forma dos seus próprios dólares reciclados) nem terão o dinheiro para as suas despesas e aventuras militares ilimitadas.

Responsáveis americanos quiseram comparecer como observadores à reunião de Yekaterinburg. Disseram-lhes Não. É uma palavra que os americanos ouvirão muito no futuro.

Notas
1. Andrew Scheineson, "The Shanghai Cooperation Organization", Council on Foreign Relations, Updated: March 24, 2009: "While some experts say the organization has emerged as a powerful anti-U.S. bulwark in Central Asia, others believe frictions between its two largest members, Russia and China, effectively preclude a strong, unified SCO."
2. Kremlin.ru, June 5, 2009, in Johnson's Russia List , June 8, 2009, #8.
3. Jamil Anderlini e Javier Blas, "China reveals big rise in gold reserves," Financial Times, April 24, 2009. Ver também "Chinese political advisors propose making yuan an int'l currency." Beijing, March 7, 2009 (Xinhua). "The key to financial reform is to make the yuan an international currency, said [Peter Kwong Ching] Woo [chairman of the Hong Kong-based Wharf (Holdings) Limited] in a speech to the Second Session of the 11th National Committee of the Chinese People's Political Consultative Conference (CPPCC), the country's top political advisory body. That means using the Chinese currency to settle international trade payments …"
4. Shai Oster, "Malaysia, China Consider Ending Trade in Dollars," Wall Street Journal, June 4, 2009.
5. Jonathan Wheatley, "Brazil and China in plan to axe dollar," Financial Times, May 19, 2009.
6. "Another Dollar Crisis inevitable unless U.S. starts Saving - China central bank adviser. Global Crisis 'Inevitable' Unless U.S. Starts Saving, Yu Says," Bloomberg News, June 1, 2009. http://www.bloomberg.com/apps/news?pid=20601080&sid=aCV0pFcAFyZw&refer=asia
7. Kathrin Hille, "Lesson in friendship draws blushes," Financial Times, June 2, 2009.
8. Steven R. Weisman, "U.S. Tells China Subprime Woes Are No Reason to Keep Markets Closed," The New York Times, June 18, 2008.


The CRG grants permission to cross-post original Global Research articles on community internet sites as long as the text & title are not modified. The source and the author's copyright must be displayed. For publication of Global Research articles in print or other forms including commercial internet sites, contact: crgeditor@yahoo.com
© Copyright Michael Hudson, Global Research, 2009


O original encontra-se em http://www.globalresearch.ca/index.php?context=va&aid=13969

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .