sexta-feira, 27 de março de 2009

Está no Le Monde - Brasil

Turbulências na zona do Euro

Durante sua primeira década, a moeda europeia não correspondeu às expectativas iniciais: experimentou um crescimento enfraquecido e uma taxa de desemprego elevada. Além disso, o déficit orçamentário de várias das suas economias superou, com frequência, o teto estabelecido em 3% do PIB

Laurent Jacque

Até que ponto a tormenta financeira que está assolando a economia internacional poderia ameaçar a perenidade do Euro? Os seus defensores estão convencidos de que isso jamais acontecerá, muito pelo contrário. Argumentam que no espaço de dez anos a zona do Euro, que é a segunda economia mundial, tornou-se um refúgio de paz e segurança apoiado em uma moeda forte ou, no pior dos casos, estável.

Em 1º de janeiro de 2009, a Eslováquia tornou-se o 16º país a adotar o Euro. Ainda mais significativo é o fato de que importantes estados europeus como Dinamarca, Reino Unido e Suécia, que ficaram de fora na ocasião do lançamento da moeda única, em 1999, estariam agora reconsiderando sua posição. Os partidários da moeda única defendem que o Banco Central Europeu (BCE), que sempre se mostrou ferozmente independente dos poderes políticos, deu mostras de competência na tarefa de controlar a expansão da massa monetária, reduzindo a inflação para cerca de 2%; as taxas de juros nominais foram mantidas em 2,5% em média, enquanto as taxas de juros reais não eram tão baixas desde os anos 1960.

Ao eliminar os riscos inerentes ao câmbio [1] e aos custos das transações, a supressão de 15 moedas nacionais dinamizou o comércio e os investimentos no interior da zona do Euro, os quais constituem um terço do seu Produto Interno Bruto (PIB).

Dez anos depois do seu lançamento, a divisa europeia alcançou uma valorização recorde em relação ao dólar e colocou os países membros da zona do Euro numa posição vantajosa frente à libra esterlina e à coroa islandesa.

A zona do euro passou a representar uma alternativa à zona do dólar, até então todo-poderoso; o Euro “forte” constitui mais de um quarto das reservas dos bancos centrais e vai se afirmando como a divisa mais indicada para lastrear os títulos financeiros emitidos nos mercados internacionais.

Conforme resume com entusiasmo o presidente do BCE, Jean-Claude Trichet, “nós contribuímos dia após dia para criar um nível de prosperidade sempre mais elevado, e estamos desempenhando desta forma um papel importante no processo de unificação da Europa” [2].

A zona do Euro, no entanto, teve sua primeira década marcada por um crescimento enfraquecido, uma taxa de desemprego elevada e, além disso, o déficit orçamentário de várias das suas economias superou com frequência o teto, determinado pelo Pacto de estabilidade e de Crescimento (PEC) [3], de 3% do PIB.

O contraste é espantoso quando comparamos essa situação com as do Reino Unido, da Suécia e da Dinamarca, três países situados fora da zona do Euro que apresentaram nesse período taxas de desemprego reduzidas, taxas de crescimento mais elevadas e déficits limitados (ou até mesmo excedentes orçamentários).

Superar a crise

Até hoje, a moeda única contribuiu muito pouco para debelar as dificuldades econômicas europeias, causadas principalmente por problemas estruturais contra os quais o Euro nunca teve a pretensão de constituir uma panaceia. As promessas de aceleração da atividade e de redução do desemprego que a moeda trazia praticamente não se concretizaram. Terá sido o euro responsável, em parte, pelas dificuldades econômicas da década que se encerrou, e conseguirá ele sair incólume de uma crise que se apresenta como arrasadora?

As transações comerciais efetuadas internamente representam cerca de 15% do PIB da zona do Euro, o que é muito pouco se comparado ao que ocorre nos Estados Unidos

O lançamento da moeda única, em 1999, estava fundado numa vontade política e não na teoria econômica da zona monetária ideal (ZMI). Segundo essa teoria, um grupo de países ou de regiões pode constituir uma ZMI quando as suas economias estão fortemente articuladas, tanto no que diz respeito aos intercâmbios de bens e de serviços, quanto à mobilidade dos fatores de produção (trabalho e capital).

As transações comerciais que são efetuadas internamente representam cerca de 15% do PIB da zona do Euro, o que é muito pouco se comparado ao que ocorre do outro lado do Atlântico, nos EUA. enquanto a mobilidade do capital no âmbito da zona do Euro aumentou consideravelmente, a mobilidade do trabalho permanece muito limitada em relação à dos Estados Unidos.

Ignorando essas questões essenciais, o tratado de Maastricht, assinado em 1992, criou uma política monetária única cuja gestão foi entregue ao BCE. Nesse tratado foram retiradas de cada país duas das suas três ferramentas de gestão econômica: a da condução de uma política monetária nacional independente e aquela da manutenção da flexibilidade do preço da sua moeda. A terceira ferramenta, a da política orçamentária, que permanece uma competência nacional, é comprometida, por sua vez, pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento. Este determina que o déficit de cada país membro não pode ser superior a 3% do seu PIB e que a dívida nacional de cada um desses países está limitada a 60% do PIB. Na prática, porém, essa regra andou sofrendo notáveis distorções, principalmente por parte da Itália e da Grécia, onde a dívida pública já alcança, respectivamente, 104% e 95% do PIB.

Em razão dessas diferenças de desempenho econômico entre os Estados membros, a autonomia das suas políticas econômicas torna-se uma questão preocupante, principalmente no caso de algum deles sofrer um choque particular que não tenha repercussão no restante da zona do Euro.

Se a zona do Euro fosse efetivamente uma ZMI, o país em dificuldade se ajustaria por meio das seguintes medidas: a mobilidade da sua mão-de-obra em relação ao restante da zona do euro; a flexibilidade dos salários e dos preços; e uma transferência orçamentária equilibradora, partindo de Bruxelas em benefício do membro em dificuldade.

Nenhuma dessas três condições estava preenchida na criação do Euro e foram implementadas, desde então, apenas algumas poucas reformas estruturais destinadas a tornar o mercado de trabalho mais “maleável”, no sentido de se criar uma ZMI. A terceira e mais simples de todas torna necessária certa dose de federalismo fiscal, além de um poder econômico centralizado que contrabalançaria a independência do BCE.

Esses objetivos permanecem muito distantes porque ameaçam a soberania de cada Estado. De fato, a União Europeia, que dispõe de recursos bastante limitados – um orçamento mantido teoricamente em 1,27% do seu PIB, mas que na prática permanece estagnado em 1,23% –, não está habilitada a proceder transferências orçamentárias para amortecer os choques que atingem as economias nacionais.

Isso contrasta fortemente com a situação dos Estados Unidos, onde 60% das despesas públicas são realizadas no nível federal e onde a mobilidade do trabalho e a flexibilidade dos salários são muito superiores às normas europeias. Nem mesmo a Alemanha unificada – que em 1991 fusionou o marco do Leste com o do oeste – conseguiu criar uma ZMI para a moeda. Apesar de ter havido uma transferência maciça (de 200 bilhões de Euros) a partir de 1991, a taxa de desemprego na parte oriental do país se mantém em mais de 20%.

No decorrer da sua primeira década de existência, o Euro teve de enfrentar ao menos dois choques “assimétricos”, assim chamados por não atingirem os países membros da mesma maneira: o dólar que se manteve “caro” ou supervalorizado de 1999 a 2002 e, mais recentemente, no período de 2005 a 2008, a disparada dos preços do petróleo.

No primeiro caso, os Estados que estavam direcionados em demasia para o comércio internacional (em vez de darem preferência para transações com os outros países da zona do Euro), foram atingidos por uma inflação importada – custo elevado das importações em razão da carestia do dólar. E isso ocorreu de forma muito mais rápida do que nos países cujas transações comerciais ou estavam voltadas principalmente para a zona do euro.

Nem mesmo a Alemanha conseguiu criar uma zona monetária ideal. Apesar de uma transferência maciça de Euro, a taxa de desemprego na parte oriental está em 20%

Assim, entre 1999 e 2002, a Irlanda viu sua taxa de inflação alcançar 4,1%, ao passo que a Alemanha, mais orientada para o comércio com os outros membros da UE do que com o resto do mundo, manteve essa taxa em 1,2%. Da mesma forma, a alta dos preços do barril de petróleo, que teve seu custo multiplicado por quatro nesse período não prejudicou o crescimento nem estimulou a inflação dos países membros de maneira uniforme: a França, por exemplo – em função da sua decisão de priorizar a energia nuclear –, depende em apenas 35% do petróleo para garantir seu abastecimento de energia, diferentemente da Grécia, da Espanha e da Itália, onde esse número é superior a 55%.

A combinação de uma política monetária centralizada com uma política orçamentária descentralizada resulta, infelizmente, em diferenças entre os níveis de inflação de cada país, as quais instauram disparidades no poder aquisitivo do euro e geram competitividade entre os Estados membros. No quadro de um sistema de moedas “nacionais”, esse efeito seria facilmente corrigido por meio da valorização ou da desvalorização “competitiva” da moeda. Mas isso deixou de ser possível, uma vez que a moeda única paralisa a ferramenta das taxas de câmbio, anulando, ao mesmo tempo, a independência das políticas monetárias nacionais.

Tarefa difícil

Em razão dessa impossibilidade de se corrigir as discrepâncias inflacionárias, o poder aquisitivo da moeda europeia vai sendo corroído em muitos países, particularmente na Alemanha, em relação à média dos demais estados da zona do Euro. entre janeiro de 1999 e setembro de 2008, por exemplo, levando-se em conta as diferenças entre os custos salariais, o Euro na Itália sofreu uma valorização de cerca de 40% em relação ao Euro na Alemanha. o mesmo ocorreu com a Espanha e a Grécia, que não estão muito atrás da Itália.

As tentativas de corrigir essas discrepâncias cumulativas constituem uma tarefa difícil porque toda diminuição das remunerações parece ser politicamente explosiva. Apenas a obtenção de ganhos de produtividade pode reverter essa tendência; a Alemanha e a Holanda foram bem-sucedidas ao implementar essa política. Portanto, não surpreende que muitas empresas, no afã de resolverem seu “problema”, tenham optado por transferir (ou tenham ameaçado fazê-lo) suas atividades para países da Europa central e oriental.

Um fator complicador da situação é a mais completa falta de sintonia entre as agendas eleitorais (dos pleitos presidencial, legislativo e municipal) dos membros da União, o que exacerba a falta de sincronia entre os ciclos econômicos nacionais, na medida em que as eleições são geralmente precedidas por uma política orçamentária expansionista.

No momento em que o mundo está se atolando numa crise profunda, a tarefa de deter o forte aumento da taxa de desemprego, que pode superar rapidamente o nível crítico de 10% a 12%, vai se tornar o objetivo primordial. Esse já é o caso na Espanha, onde a taxa de desemprego disparou repentinamente para 13% nos últimos seis meses.

A tarefa de combater o desemprego resultará inevitavelmente em déficits fiscais maciços, os quais abrirão brechas no Pacto de Estabilidade e Crescimento difíceis de serem controladas e acabarão ameaçando a estabilidade da moeda única. Isso porque os planos de recuperação costumam estourar os limites máximos do déficit orçamentário (de 3% do PIB) e da dívida pública (60% do PIB), o que consiste também em uma ameaça à independência do BCE.

Os Subcompetitivos

Para certos países, cujas economias já estão muito fragilizadas pelas disparidades inflacionárias, isso não será sequer suficiente, o que pode levá-los facilmente a ceder à tentação de seguir o exemplo da recente e brutal desvalorização da libra esterlina.

A Espanha, a Grécia, a Itália e Portugal (cujas taxas de desemprego superaram com frequência a faixa dos 10% no decorrer dos últimos dez anos) não aceitarão permanecer eternamente “subcompetitivos” por conta da supervalorização do “seu” Euro. Por mais delicada que seja a tarefa de restaurar sua moeda nacional, o risco é de que certos países optem por abandonar o euro com o objetivo de recuperar sua competitividade econômica. É pouco provável que tais guinadas ocorram a curto prazo – entre outras razões, seria muito caro para um país que acaba de se despedir da zona do Euro financiar a dívida nacional (contraída em Euros) por meio de uma moeda novamente restaurada e desvalorizada. Entretanto, toda deterioração do ambiente social já frágil (conforme demonstra a violência das recentes manifestações populares na Grécia [4]) e prejudicado ainda mais por uma aceleração brutal do desemprego, poderia, em alguns países, aumentar a tentação de se adotar dessa solução extrema.



[1] Riscos vinculados à variação da taxa de câmbio das divisas. Antes da unificação monetária, investidores especulavam com frequência com o franco francês, a lira italiana ou a libra esterlina. Em setembro de 1992, George Soros acumulou mais-valias consideráveis apostando na desvalorização da libra, no momento em que o Reino Unido se atolava na crise econômica.

[2] Jean-Claude Trichet, entrevista concedida a Die Zeit, Hamburgo, 23 de julho de 2007.

[3] O Pacto de Estabilidade e de Crescimento retoma os critérios de convergência definidos pelo Tratado de Maastricht; ele mantém, entre outros, o objetivo da redução dos déficits públicos, um compromisso que todo membro deve assumir tendo em vista a sua incorporação na União Econômica e Monetária (UEM).

[4] Ler Valia Kaimaki, “A recusa do futuro”, Le Monde Diplomatique Brasil, edição 18, janeiro de 2009.